domingo, 22 de março de 2015

Passagem do Aqueronte: Severo Brudzinski entre o onírico e o real


                         (Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Outubro 2014)
 
É surpreendente a quantidade de contistas novos que tem publicado em Curitiba nos últimos anos. Tenho me ocupado nesta coluna em resenhar vários desses autores, como Renato Bettencourt Gomes, Renato Ostrowski, Homero Gomes, Rui Werneck de Capistrano, Severo Brudzinski e sem contar, claro, os mais que consagrados Jamil Snege e Dalton Trevisan.

Verdadeiro celeiro de grandes contistas, Curitiba é um espaço literário bastante prolífico àqueles que buscam seguir os passos do grande mestre Trevisan. Mas como já afirmei em texto anterior, há vida inteligente em Curitiba depois de Dalton, Leminski e Tezza. Mais um desses novos autores de nossas paragens que descubro é Severo Brudzinski.

Severo Brudzinski nasceu em Curitiba em 1973. É graduado em Direção Teatral pela FAP. Publicou os livros Os amores e mortes de Gustavo Carbel (2005), Líricas (2008) pela Stultifera Navis e Passagem do Aqueronte (2012) pela Kafka. Coletânea de contos bastante singular, Passagem do Aqueronte transita entre o onírico, o imaginado e o delírio, formando um corpus narrativo coeso e muito bem estruturado.

O pequeno volume é composto por onze contos e todos os textos são interligados por um único elemento, a autocitação. Em todos os contos Severo é o protagonista de situações diversas, porém todas envoltas a uma atmosfera labiríntica e nonsense. O primeiro conto, Tabacaria, é uma clara alusão ao famoso poema de Fernando Pessoa.

Os pedestres dissimulam os olhos sob os óculos escuros, ocultam os rostos nas golas levantadas dos sobretudos e sob chapéus negros, escondem as cabeças. Um deles para diante da porta de aço do botequim e entra sem pedir licença.

Você é o Esteves sem metafísica? Quer saber o homem que traz sobre o rosto uma máscara de malha branca com um buraco na boca.

(p.8)

O Severo protagonista de Tabacaria está em um bar, e sua atmosfera soturna se contrapõe à atmosfera da rua que é clara, repleta de vida e de pessoas. Há aqui um embaralhamento de tempos físico e psicológico, Severo mistura passado, presente, realidade e sonho em um único plano. Talvez haja aqui a influência do álcool sobre o protagonista que não tem controle daquilo que vê ou sente.

Outro conto que merece destaque é Cama do Céu, Cama do Inferno, que descreve, no início, uma relação sexual com minúcias. Até aqui todos os contos começam, geralmente, simulando narrativas convencionais e depois assumem aspectos mais sombrios, oníricos e noir. As ações não são claras, nunca se sabe de fato o que está acontecendo.

No conto seguinte, Nas fossas, Brudzinski faz uma breve incursão no microconto, que relata um campo de batalha. Como é recorrente no livro todo, toda ação é sugerida. A ação transcorre em meio a uma névoa obscura de seres decadentes e melancólicos, fato que também é perceptível no conto que dá título ao livro, Passagem do Aqueronte. Severo constrói nesse texto imagens surreais nas quais o absurdo assume proporções consideráveis. Tzvetan Todorov chama essa dualidade entre o fantástico e o real de fantástico-maravilhoso, que é quando elementos sobrenaturais são aceitos no universo da realidade e o irreal vive em harmonia com o real.

As ações vão se sucedendo de forma vertiginosa e consequentemente ficando mais obscuras. Há o predomínio total da sugestão sobre a ação. É sonho? Ilusão? Devaneio? Em alguns momentos a insistência em soar nonsense se torna um tanto exagerado e enfadonho, mas há mais acertos do que erros.

Severo Brudzinski, o autor do livro, não o personagem, deixa o melhor conto para o final, A praça. Nesse texto Brudzinski se utiliza de um artifício que faz com que o conto de fato seja o melhor do livro, a metalinguagem. Nesse conto há a desconstrução da estrutura estanque da narrativa convencional. Ao se incluir em um texto, o personagem automaticamente transforma a narrativa em metaliteratura.

Quanto tempo levou?

Não sei...Alguns dias. Talvez anos. Sei lá, uma vida inteira. Um momento. Quem sabe?

E por que ela nos observa o tempo todo?

Quem?

Essa pessoa que está lendo o livro com as mãos suadas.

Ela é nossa testemunha.

(p.109)

A seguir Brudzinski tece algumas considerações bastante pertinentes sobre o fazer artístico como um todo.

Mas por que sob os olhos dela? Tudo isto é muito estranho. Só aqui, sob o olhar de pessoas como essa é que temos existência. Só aqui nesta praça, neste jardim secreto. Cada vez que olhos curiosos percorrem as linhas dessas frases, nós viveremos.

(p.110)

É uma ótima visão sobre o ato de escrever e sua finalidade (se há alguma). A literatura só existe de fato quando é lida, observada, ouvida. Severo Brudzinski encerra seu Passagem do Aqueronte com saldo positivo. Livro coeso e bem estruturado, o volume mantém sua qualidade em todos os contos.

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