quarta-feira, 17 de maio de 2023

RESENHA EMBOSCADA

 



Quando a autora desta obra diz, "sou gaúcha que não tem paradeiro", entendo-a de fato como um gaudério, aquele que veio ao mundo, como ela mesmo diz, sem paradeiro. Hoje vive aqui, “amanhã sabe-se lá. Certo é que escreverei até o fim, pois sempre haverá emboscadas”.

Mesmo inquieta, Kátia sempre está sujeita a emboscadas, pois acaba se envolvendo com movimentos literários, e não existe terreno mais perigoso do que este, o da arte por si só, sem ambição, já que ela não se enquadra entre os escritores que buscam fama e dinheiro.

Em Emboscada (Vespeiro Edições) ocorre, com certeza, o nascimento (que faz jus ao seu sobrenome) de uma nova forma de escrever, numa espécie de simbiose, como nas plantas, uma associação em que ambas as espécies dependem uma da outra, recebendo benefícios mútuos.

No poema que abre o livro e dá título à obra, Kátia Nascimento diz a que vem, afirmando através da boca do personagem que “a vida, de tocaia, espreita na porta de casa. O universo conspira para que finalmente alguém pague a conta”.

No conto Araucária, a autora diz “há tanto tempo nesta cidade e não havia ainda se permitido desfrutá-la, contemplá-la”...”o trauma infantil virou adulto. E ela segue treinando para ser feliz.”

Já no conto Inóspito café, Kátia dá voz à Valentina, mulher universal que “por necessidade, passou a vida oprimindo vaidades”. Também que "discriminada porque sabia conjugar verbos perfeitamente”; ou"ela não consegue disfarçar o que sofre por permitir” e Valentina se conforta com o pouco ao se autoanalisar para dizer que “a vida é como um passar café. Opta-se pela qualidade da água, do café e do coador. Até mesmo do bule. E esta alquimia é a arte". É aqui que Kátia Nascimento se torna coautora de si mesma quando busca a própria arte, o fazer literário, mesmo ciente de que “ainda sofremos o fardo de ser mulher. Se não podemos ser o que somos, é realmente um fardo”.

Quando se refere à morte, na forma poética, a autora fala dela, a Morte, com uma interrogação: “Há sentimentos que se assemelham à morte. E, como morte, deveriam ser interrompidos?” Neste ponto Kátia vai além, quando no conto O corredor introduz a morte como ela é, inevitável, e se apresenta na família, que não conseguiu ficar junta, de seis filhos, numa espécie de diáspora, foi cada filho, um em cada canto diferente, porque junto não dava certo, mas tiveram que se juntar em torno da mãe moribunda, como sói acontecer nas melhores famílias.

Kátia Nascimento coloca o fio de prumo numa espécie de trilogia, no corredor da morte, desembocando no conto A nudez do pai, em que a enfermidade do protagonista “o deixara com sequelas a lhe perseguir a vida toda. Frustrado caíra em depressão muitas vezes”, e também ”eu sou vivo-morto – costumava dizer”.

Porém, nem só de dor e desamparo é feita a obra, e a autora dá uma guinada de cento e oitenta graus no conto O banho do pecado, onde se lê que “embaixo do chuveiro é um dos melhores lugares para pensar, para chorar, e também para ser feliz”.

No conto Culpada, Kátia retorna ao tema principal, pois “a vida é como uma arapuca. Quase sempre caímos nela. Às vezes fazemos questão de não sair. É preciso vigiar-se”, e nessa vigília a personagem sente-se culpada ao comprar um filé-mignon com o parco salário de professora que recebe, sabendo que tantos e quantos passam fome onde “passou dias com a sensação de que deveria pedir desculpas por poder comer um filé”.

Kátia Nascimento retorna com o poema Tempo, com esse “pudera voltar no tempo. Transgredi-lo. Enganá-lo. Arrancaria o que não me permitiu. Pudera voltar. Só voltar. Mostraria do que sou capaz. No viver. No corpo. No espírito. Provaria como sou intensa”.

De fato a autora mostra ser capaz e intensa ao ponto de levar o leitor até o final.

 

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Campo Magro, 16 de maio de 2023.

Renato V. Ostrowski

                                                                                                                            rvostrowski@hotmail.com

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