domingo, 14 de abril de 2013

LÉAH E OUTRAS HISTÓRIAS: JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS ENTRE O PRESENCISMO E O NEORREALISMO

Há uma relevante produção narrativa na literatura portuguesa a partir dos anos 30. É um resgate da narrativa que esteve em baixa durante o início do século XX  muito por influência do orfismo. A Revista Presença foi responsável por uma espécie de ruptura com os orfistas que se ocuparam, em sua maioria, com a poesia. Nomes como Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros criaram Orpheu que, em 1915, constituiu a gênese do Modernismo português.

Em uma espécie de movimento transitório entre o orfismo e o presencismo, surge o neorrealismo, com suas narrativas de cunho social e panfletário. No Neorrealismo não há espaço para a poesia, para os experimentalismos e divagações do orfismo nem para a "literatura viva" e espontânea do presencismo. Esse imediatismo e clareza só são alcançados com a prosa direta, enxuta e pouco adjetivada dos neorrealistas.

Porém, mesmo com vários autores se vinculando literariamente ao Neorrealismo, outros negaram esse vínculo ou qualquer outro tipo de rótulo, como José Rodrigues Miguéis. Autor de obra vasta, Miguéis foi praticante de vários gêneros literários como romance, ensaio, crônica, teatro e conto, e foi na narrativa curta em que se sobressaiu. Exímio contador de histórias e profundo conhecedor da língua portuguesa, Miguéis explorou diversos aspectos da narrativa curta, como temas históricos, surreais, experimentais de influência simbolista, mas Miguéis sempre foi, além de indivíduo cosmopolita, um escritor cosmopolita. Grande parte de seus textos tem como espaço lugares diversos (não portugueses) ou não nomeados, fato que pode até frustrar leitores mais tradicionais da Literatura Portuguesa, mas são narrativas fortes, muito bem construidas esteticamente.

O livro Léah e outras histórias (1958) é seu trabalho mais relevante. O volume reúne dez contos sem nenhuma ligação temática entre eles. Em alguns dos contos Miguéis explora outros espaços, o que torna suas narrativas bastante universais. O primeiro conto do volume, Léah, narrado em primeira pessoa (o que confere um tom mais intimista à narrativa) conta a história de um português que vai a trabalho para Bruxelas. Ficando hospedado em uma pensão, o narrador-personagem se apaixona pela camareira, Léah, figura misteriosa e enigmática que aos poucos vai se envolvendo mais intimamente com o protagonista e depois some sem deixar vestígios. O conto apresenta uma atmosfera um tanto noir sem oferecer respostas para os vários questionamentos do narrador.

Miguéis também flerta com a ficção policial no conto Dezasseis horas em missão secreta, em que um agente secreto não nomeado chega em um lugar também não nomeado, mantendo um certo mistério até o fim da narrativa. A ação, um tanto kafkiana, mostra um agente caricato que não tem muita noção do papel que irá desempenhar em sua missão. Uma espécie de sátira das histórias detetivescas americanas.

Vários dos contos merecem destaque, como Uma viagem na Nossa Terra, que narra uma belíssima viagem entre as cidades do Porto e Lisboa, mostrando com minúcias paisagens e costumes das mais variadas. É um belo painel geográfico de Portugal visto por um dos homens (a viagem é feita por dois casais) que tem uma visão um tanto crítica do que vê. Em momento algum Miguéis entra no viés da crítica social, mesmo estando de alguma forma ligado, à distância, ao neorrealismo. As obras neorrealistas que narravam algum tipo de viagem normalmente serviam como denúncia das mazelas que corrompiam os seres dominados por uma classe burguesa opressora. Miguéis se ocupa em explorar os dramas pessoais de seus personagens, que muito se assemelham entre si.

O melhor conto do livro foi deixado para o final, O Morgado de Pedra-Má. O conto narra os últimos dias de Dom João de Berredo e Chinchorro de Baticova, o Morgado de Pedra-Má. Morgado é o filho único ou único herdeiro, normalmente vinculado a alguém que não vive de seu próprio esforço. No conto, o Morgado de Pedra-Má é um fidalgo autoritário que vive em seu palacete sozinho com seus criados. Recebeu a alcunha de Morgado de Pedra-Má por ter algum vínculo obscuro com uma pedra que, segundo os moradores do vilarejo, em alguns momentos reluzia a imagem de uma cruz. Mas a imagem era vista (mesmo nunca tendo sido vista por ninguém) como maligna, e todo o poder do Morgado vinha dela.

Os fatos que seguem são narrados com maestria por Miguéis que, como poucos, consegue manter um tom misterioso sem cair no clichê policialesco hollywoodiano. O Morgado vai sofrendo uma espécie de transformação psicológica conforme suas alucinações acerca da Pedra-Má vão se tornando cada vez mais fortes. Ele se tranca em sua alcova quando descobre que seu cachorro desaparece sem deixar vestígio algum, destroi tudo no quarto, atira objetos pela janela, e enquanto isso o povo todo do vilarejo observa esse terrível processo de loucura. É interessante ressaltar que o Morgado é dominado pela loucura provavelmente por um sentimento de culpa, e a imagem da Pedra-Má como fonte de seus males é um símbolo de sua expiração. O fim é trágico e não deixa brechas para nenhum tipo de recomeço.

José Rodrigues Miguéis é um escritor português que viveu a maior parte de sua vida no exterior. Morou na Bélgica, no Brasil e nos Estados Unidos, mas nunca perdeu suas origens lisboetas como homem nem como escritor. Pouco conhecido no Brasil, é um dos contistas mais relevantes de língua portuguesa do século XX. Não se vinculou totalmente às estéticas vigentes em seu tempo e de fora (como auto-exilado) tornou-se um fino observador de Portugal. Deixou uma obra vasta que merece atenção crítica.    

4 comentários:

  1. Um belo trabalho crítico sobre a obra do nosso José Rodrigues Miguéis. Parabéns e um abraço, Daniel.
    Jayme

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  2. Mestre Jayme, muito obrigado pela leitura e pela gentileza. Abraço forte.

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  3. alguem pode dizer quais são os dez contos?
    1- Uma viagem na Nossa Terra
    2- Leah
    3- Pouca Sorte com barbeiros
    4- Dezasseis horas em missão secreta
    5- O Morgado de Pedra-Má
    6- ?
    7- ?
    8- ?
    9- ?
    10- ?

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  4. respondendo:6-O Natal do Dr. Crosby
    7-Regresso à cúpula da pena
    8-A importância da risca do cabelo
    9-Uma carreira cortada
    10-Saudades para D.Genciana

    Assim ,segundo a edição das Obras Completas,2º de 13 volumes,Círculo de Leitores,1995

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