terça-feira, 11 de julho de 2017

A POÉTICA DA HONESTIDADE




Quando Proust escreveu sua obra monumental, Em busca do tempo perdido, muito se especulou se o escritor francês de fato escreveu sobre si próprio ou se era tudo ficção. Há de se levar em consideração os vários meandros dos conceitos de ficção ou ficcionalidade que sempre fizeram parte do universo literário. Mesmo que a mimese faça parte da obra de arte como elemento fulcral dentro de seu modus operandi, muitos questionamentos se fazem presentes no consumidor de arte (leitor, ouvinte, espectador) por não levar em consideração o distanciamento brechtiano necessário entre obra e leitor.

Vários outros escritores praticaram o que algum tempo depois de Proust se convencionou chamar de narrativa autobiográfica, como Kafka, Hemingway, Truman Capote e mais recentemente Philip Roth, Paul Auster, Moacyr Scliar, Clarice Lispector, Cristovão Tezza e o fenômeno editorial norueguês Karl Ove Knausgard. Desconhecido do público brasileiro até a publicação dos primeiros volumes da série Minha Luta (o próprio autor disse ter se baseado no livro de Adolf Hitler, porém a obra não tem nada relacionado ao nazismo) e até sua participação na FLIP 2016, na qual foi uma das atrações principais, Knausgard tornou-se mundialmente conhecido por abordar em seus livros sua própria vida. Ao todo são seis volumes, sendo que os quatro primeiros foram publicados no Brasil, A morte do Pai (2013), Um outro amor (2014), A ilha da infância (2015) e Uma temporada no escuro (2016), todos editados pela Companhia das Letras.

Os livros de Knausgard têm chamado a atenção do público e da crítica por vários motivos, principalmente por serem relatos desprovidos de quaisquer tipos de pudores e por serem extremamente bem escritos. Todos os quatro volumes publicados em português são livros bastante extensos, porém a leitura não é enfadonha nem pesada, muito pelo contrário, Knausgard assume um tom muito claro de auto-ironia que permeia toda sua obra.

No quarto volume da série , Uma temporada no escuro, nos deparamos com o jovem Karl Ove Knausgard, aos 18 anos, que passa um ano em uma aldeia no norte da Noruega trabalhando como professor substituto. Mesmo sendo muito jovem, Karl Ove já tinha o objetivo de tornar-se escritor, e esse foi um dos motivos dessa espécie de fuga ontológica. Fuga de si próprio, do espectro do pai ausente e alcoólatra, das desastrosas relações amorosas e de uma espécie de spleen que o atormenta com frequência.
Entre seu trabalho como professor na escola da aldeia, porres homéricos, o jovem Karl Ove tenta, desesperadamente, tornar-se um escritor. Logo o jovem professor vê-se diante de dilemas e neuras relacionados ao magistério que nunca havia enfrentado antes. Desde problemas em administrar suas turmas à dificuldade de controlar seu desejo por suas alunas, muitas das quais eram apenas dois anos mais novas que ele. Há de se levar em consideração em uma obra como Minha Luta, os conceitos bakhtinianos de autor-pessoa e autor-criador. Para Bakhtin, o autor-criador assume uma posição externa que permite dar forma e acabamento estético à personagem e ao mundo habitado por ela.

“Nesse excedente de visão (exotopia) e conhecimento do autor, sempre determinado e estável em relação a cada personagem, é que se encontram todos os elementos do acabamento do todo, quer das personagens, quer do acontecimento conjunto de suas vidas, isto é, do todo da obra”.

 Por isso, por mais que tenhamos em mente que Minha luta é uma obra autobiográfica, haja evidentemente o elemento da autocitação, narrativa autodiegética, deve-se ter em mente certo distanciamento entre autor e obra.

Ainda tendo como base os estudos de Bakhtin (Estética da criação verbal), autor-pessoa é aquele que “reflete a posição volitivo-emocional da personagem e não sua própria posição em face da personagem”, (p.5) ou seja, o sujeito físico. Auto-objetivação do autor-pessoa na personagem : “não deve ocorrer esse retorno a si mesmo”.

O escritor Karl Ove Knausgard, autor da série Minha luta, o sujeito físico, em várias entrevistas e em sua fala na Flip 2016, deixou bem claro que não mudou nome algum em seus relatos. Nem nomes de lugares e situações, como o fato de aos 18 anos ainda ser virgem e nunca ter se masturbado, ter trabalhado como cronista de um jornal independente de música; porém, o autor-pessoa Knausgard, em mais de uma entrevista, afirma que sua avó paterna, assim como seu pai, era alcoólatra, fato que não ocorre no livro, Uma temporada no escuro, no qual descreve seus avós como dois idosos tradicionais e caretas. Volta-se aqui à questão do distanciamento e do conceito da posição volitivo-emocional da personagem, e não do autor.

O trabalho de Knausgard com a memória é muito bem executado através de reminiscências, solilóquios, longos flashbacks que tornam suas narrativas mosaicos em que nada é descartável; cada palavra, cada lembrança está no lugar certo, e em momento algum torna-se piegas. As madeleines do jovem Karl Ove são os vários copos de vodka que degusta. O final do quarto volume é um belo exemplo desse desprendimento afetivo e de auto-ironia, quando depois de ter deixado seu posto como professor no norte após um ano, Karl Ove, em um festival de música, está muito próximo de perder sua virgindade. O autor-pessoa, ao invés de manter o tom poético que experimenta em alguns fragmentos do romance, reproduz o estilo do jovem aspirante a escritor de 18 anos que foi.

“Vilde se arrastou até a entrada da barraca, abriu o zíper e então, com as pernas para dentro e o peito para fora, vomitou. Depois gemeu e mais um espasmo atravessou o corpo dela, eu vi aquela bunda enorme na minha frente e não pude resistir, segurei aquelas coxas, meti pra dentro e continuei mandando ver”. (p.495)


ESTRELA DIFUSA

  O tempo é o fator que talvez possa explicar melhor algumas coisas que simplesmente não escolhemos; ou melhor, insistimos em dizer que não ...