quinta-feira, 30 de junho de 2022

ALDEIA NOVA: UMA ODISSEIA PELO ALENTEJO


 


Manuel da Fonseca foi um dos principais autores do Neorrealismo português. Sua obra é vasta, girando em torno da poesia, do romance, do conto e da crônica. Mas foi no conto que sua obra teve mais relevância em Portugal e em outros países da Europa, como Espanha e França. Títulos como  Rosa dos Ventos (1940) poesia, Aldeia Nova (1942) contos, O Fogo e as Cinzas (1951) contos, Cerromaior (1943) romance, e Seara de Vento (1958) romance, estão entre suas obras mais conhecidas.


Tendo começado muito jovem na poesia, logo Manuel da Fonseca mostrou-se um grande narrador, legítimo contador de histórias que logo teve seu primeiro livro em prosa, Aldeia Nova, reconhecido como um marco do Neorrealismo em Portugal, deixando, assim, sua produção poética em segundo plano.


O livro Aldeia Nova reúne doze contos, sendo que em muitos deles nota-se uma sequência cronológica e reaproveitamento de personagens. A construção de cada personagem que aparece ao longo do livro é moldada meticulosamente, seguindo, em muitos casos, estereótipos das vilas alentejanas do início dos anos 40. Como por exemplo, no conto O primeiro camarada que ficou no caminho, que narra a história (como não podia ser diferente) trágica da família Parral. Esse conto é o primeiro que mostra o dia a dia desta família de lavradores falidos, e é nesse conto que Rui Parral aparece pela primeira vez. Rui é como se fosse o personagem principal do livro todo, pois ele aparece em vários outros contos posteriores.


A narrativa gira em torno do drama da família Parral, pois além de Rui, seus pais têm outro filho, Carlos, e ao que tudo indica sofre de lepra. A família, para proteger Rui da doença, não deixa que ele se aproxime da casa da família, deixando-o assim aos cuidados dos avós. As cenas que seguem são de extrema dramaticidade e beleza, pois Rui, ao mesmo tempo em que se vê abandonado pela mãe sem saber qual o motivo, é privado da companhia do irmão, seu grande amigo.


Não por acaso que Manuel da Fonseca, nesse conto, descreve os percalços da família Parral tão dramáticos, pois tem a intenção de mostrar a situação precária da rotina da família alentejana. Manuel da Fonseca insere-se na corrente neorrealista, mas sua literatura em momento algum pode ser chamada de panfletária. Antes literariamente engajada, mas não panfletária.


O conto que segue, O ódio das vilas, narra a história de António Vargas, um herdeiro de uma rica família de Cerromaior que larga sua noiva, uma bela moça de família tradicional da cidade para casar-se com Maria Jacinta, filha de um pobre lavrador. A intenção de António Vargas é levar sua nova esposa para sua casa em Cerromaior e mostrar à cidade que seus princípios vão além das convenções sociais e de seu provincianismo. Esse conto mostra claramente a rivalidade que há entre as aldeias do sul de Portugal, principalmente quando há conflito de classes. Manuel da Fonseca deixa transparecer sutilmente preceitos do marxismo, do qual era ferrenho adepto, como muitos autores neorrealistas.


No conto seguinte, Sete-Estrelo, novamente há a presença de Rui Parral. Ainda criança, é abandonado pelos pais, que vão embora em busca de emprego em outras aldeias do Alentejo, e não voltam mais. Rui, abandonado, fica aos cuidados dos avós maternos, e dessa maneira é criado livre pelos campos de Cerromaior. Esse conto está entre os melhores da coletânea, pois mostra o drama da família Parral mais interiormente, seus pensamentos, suas angústias, e é nesse ponto que difere muito dos outros contos, que abordam dramas mais coletivos.


Essa opção pelo drama pessoal repete-se no conto que vem logo a seguir, Névoa. Essa breve narrativa conta a história de Zé Limão, um alcoólatra que vive de esmolas e da caridade alheia. Conforme a narrativa vai se desenvolvendo, uma névoa vai tomando conta da cidade. A névoa aqui é um símbolo para a distância entre as relações humanas, uma metáfora sobre a impossibilidade de comunicação entre as pessoas. E logo que Zé Limão acorda de um porre, encontra-se sozinho, isolado envolto à névoa que se apodera de toda a vila. Dessa maneira segue trôpego por ruelas, paredes frias de pedra e encontra apenas portas fechadas.


Mais uma vez o final do conto é trágico, como toda atmosfera narrativa, característica de Manuel da Fonseca, que mostra nos contos uma benevolência ou condolência muito grande por párias que a sociedade rejeita, por seres marginais e injustamente abandonados pelo sistema, mostrando assim, uma visão rousseouniana impossibilitada, pelos percalços da vida, de ser mudada ou vista com esperança.


Observa-se a mesma temática nos contos Aldeia Nova e Nortada. No conto que dá título ao livro, Zé Cardo, o jovem protagonista de 13 anos, é um trabalhador rural que sonha em conhecer Aldeia Nova, o vilarejo mais próximo de onde mora. As condições de sobrevivência são precárias, o trabalho é braçal e se inicia antes do sol nascer e termina após o sol se pôr. O lugar onde dorme é praticamente ao relento, enfrentando calores extremos e as piores nevascas. Dessa maneira Zé Cardo vai vivendo sua vida, sempre sonhando em conhecer Aldeia Nova.


Cinta Mouro, uma espécie de caixeiro-viajante que sempre ia a Aldeia Nova, contava ao povoado suas histórias de viajante, o que fascinava Zé Cardo e assim nasceu o desejo de conhecer tal povoado. Mas o desejo nunca pode ser realizado, mostrando assim uma frustração que não pode ser mudada. Zé Cardo e suas frustrações nesse conto servem como um símbolo para todos os trabalhadores rurais do Alentejo, e a pequena aldeia de Zé Cardo como um microcosmo para o mundo lá fora.


O conto termina com Cinta Mouro contando uma de suas histórias para seus companheiros, e Zé Cardo, cansado por ter trabalhado o dia todo, adormece sem ouvir seu final. Aqui há uma bela imagem que serve como sinal de esperança, pois Zé Cardo adormece e sonha que entra em Aldeia Nova, como nas histórias que ouvia. Manuel da Fonseca busca com esse final uma espécie de redenção para o alentejano, mas essa redenção, ao mesmo tempo em que é descrita com um forte tom de esperança, também se torna impossível, pois só ocorre através do sonho de seu protagonista.


Em Nortada, o conto que encerra o livro, nota-se mais uma recorrência nos contos do volume, que é a importância do espaço na narrativa. O Neorrealismo tem como característica uma técnica chamada de espaço atmosférico, que é a inserção do espaço como elemento salutar na narrativa. E isso ocorre com frequência nos contos e também nos romances de Manuel da Fonseca.


Em meio a uma atmosfera sombria e noturna, a narrativa de Nortada se desenvolve por quase vinte páginas, e narra a desventura de Rui Parral, agora já crescido e retornando a Cerromaior depois de muito tempo. A caracterização do espaço aqui se desenvolve de maneira a interferir diretamente nos acontecimentos narrados, pois conforme Rui vai se aproximando de seu destino final, o frio, o gelo das montanhas e a escuridão irredutível vão agindo de forma a impedir a viagem de terminar de forma tranquila. Rui viaja como passageiro em uma carroça de um aldeão, que por algum dinheiro se prontificou a levá-lo a Cerromaior.


Quando Rui chega à casa que fora de sua família quando criança, nota-se a degradação física do ambiente, que por sua vez, reflete a degradação também física e moral de Rui. Na escuridão e no frio da casa abandonada, Rui enxerga vultos e espectros que são sinais da desolação, da miséria e do tempo. Manuel da Fonseca constrói, assim, uma das mais belas imagens de todo o livro, indo diretamente ao encontro das tendências neorrealistas, mostrando e denunciando a exploração da sociedade pelo meio rural. Um dos temas mais recorrentes dos escritores neorrealistas.

quarta-feira, 29 de junho de 2022

A EQUILIBRISTA SEM DOM, de Mila Gomes

 





Em tempos sombrios e difíceis como os últimos anos (crise em 2013, golpe em 2016, eleição do inominável em 2018, pandemia), é muito bom quando nos deparamos com um olhar atento, porém sensível, de nosso cotidiano.

Mila Gomes, poeta carioca, em seu livro de estreia, A equilibrista sem dom (Editora Ipêamarelo, 2021) experimenta assumidamente um tom confessional. A poeta transita entre reflexões sobre idas e vindas amorosas, amores e paixões platônicas e sobre a consciência do corpo como elemento fulcral desse eu-lírico que se esgueira como o gauche drummondiano (ou como o flâneur baudeleireano?) por versos diretos, nada herméticos, mas que em momento algum soam simplistas.

Mila Gomes parece apresentar à leitora e ao leitor um poema único do começo ao fim. Sua dicção bastante peculiar, com versos livres, mas com certos jogos de construção de imagens que nos remetem à "santíssima trindade" retórica poundiana, explora muito bem os elementos sensoriais da fanopeia. 

João Apolinário e João Ricardo, compositores do clássico do Secos & Molhados, Amor, se referem metaforicamente à leveza da pluma (em oposição aos terríveis anos de chumbo sob o tacão do coturno dos milicos), o que se aproxima muito do que Mila Gomes faz em A equilibrista sem dom. Assim como nos terríveis anos de ditadura, vivemos momentos de violência, de discurso nacionalista e anti-humanitário, mas ainda assim é preciso de leveza e de sofisticação, que são elementos em que a poeta acerta em cheio.

Serviço:

A equilibrista sem dom
Poesia
10x18
59 páginas
Editora Ipêamarelo 

   

terça-feira, 21 de junho de 2022

OS CUS DE JUDAS E O PROGRESSO DA LEMBRANÇA*




O estilo de António Lobo Antunes em seus romances iniciais é bastante diferente do que fez posteriormente, principalmente nos romances escritos a partir dos anos 90. Todo o seu trabalho meticuloso com a memória permanece, mas é na linguagem que se diferenciam. Pode-se dizer que Lobo Antunes evoluiu esteticamente de obra para obra ao longo das décadas, mas a memória continuou sendo sua grande obsessão, seu leitmotiv.

Seus romances iniciais, principalmente os dois primeiros, se diferenciam muito pouco temática e esteticamente entre si. Memória de Elefante, escrito e publicado poucos meses antes de Os cus de Judas, em 1979, narra a história de um médico psiquiatra que retorna da guerra colonial em Angola sofrendo de graves crises existenciais e traumas complexos com os quais não consegue lidar. Os cus de Judas também narra a história de um médico psiquiatra que retorna da guerra colonial em Angola, que também sofre de crises existenciais graves das quais não pode se desvencilhar, mas já há, no segundo livro, um cuidado maior com a linguagem, a mudança de foco narrativo, os elementos exotópicos bakhtinianos de como ver o outro e a si próprio e, claro, um apuro maior com a questão do trabalho da memória do protagonista. Se em Memória de elefante há a presença embrionária da reprodução da memória histórica, em Os cus de Judas percebem-se elementos bastante próximos das teorizações do lembrar, tanto da memória histórica (porém não é o que predomina) quanto da memória espontânea e da memória aprendida.

O protagonista de Os cus de Judas passa uma noite inteira em um bar relatando suas lembranças mais diversas para uma estranha. Seu relato começa com uma lembrança da infância, muito mais distante, porém mais clara, mais viva, do que seus relatos da guerra colonial. É importante aqui considerar esses dois polos equidistantes: infância até a fase adulta (antes de partir para África) = memória espontânea; fase adulta (vai do período durante a guerra até seu retorno a Portugal) = memória aprendida. E claro, há o momento em que se lembra, ou seja, em que o trabalho da memória se concretiza no tempo presente, no qual todo funcionamento mnemônico é possível. O início de seu relato tem o objetivo de se referir a algo muito mais distante, mas menos doloroso e, consequentemente, mais fácil de ser concretizado, ou seja, de ser transformado em linguagem.


Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico era do rinque de patinação sob as árvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento em elipses vagarosas sem mover um músculo sequer, rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas, que, se falassem, possuíam seguramente vozes tão de gaze como as que nos aeroportos anunciam a partida dos aviões, sílabas de algodão que se dissolvem nos ouvidos à maneira de fins de rebuçado na concha da língua. Não sei se lhe parece idiota o que vou dizer mas aos domingos de manhã, quando nós lá íamos com meu pai, os bichos eram mais bichos, a solidão de esparguete da girafa assemelhava-se à de um Gulliver triste, e das lápides do cemitério dos cães subiam de tempos a tempos latidos aflitos de caniche (...) (ANTUNES, 2003, p. 7).


Enquanto sua narrativa vai avançando, as reminiscências de um passado não tão lírico nem tão facilmente recordado vão assumindo proporções maiores, porém sem organização cronológica. O único elemento cronológico do romance é o tempo presente, ou seja, é a noite em que o protagonista narra suas desventuras para uma desconhecida em uma bar. Vale ressaltar que conforme o tempo cronológico avança, o psicológico se movimenta livremente na consciência do protagonista, e é nesse movimento que não pode ser controlado, em que pode ser observada a outra memória descrita por Bergson, a memória aprendida, ou seja, ela é involuntária na maior parte do tempo, ainda mais quando situações de alarme, traumáticas, são lembradas. Que é o que ocorre com as lembranças do protagonista de seu período em Angola. Bergson afirma que "A questão é saber se a lembrança da dor era verdadeiramente dor na origem” (BERGSON, 1996, p.33), ou seja, as lembranças do protagonista de seu tempo como oficial do exército português na guerra colonial de fato foram dolorosas no momento em que ocorreram? Podemos afirmar com segurança que aquilo que é narrado pelo protagonista em uma noite de bebedeira foi tão dramático quanto parece ser durante seu processo de rememoração, pois seu sofrimento já começa antes de embarcar para África, com seu desencanto com o meio pequeno-burguês que o cerca e oprime e do qual faz parte; seu desencanto com a sociedade portuguesa como um todo, reacionária e retrógrada que não são compatíveis com seus anseios e desejos, tanto presentes quanto futuros.

É bastante curioso pensar em Salazar como um espectro onisciente que de fato moldará o pensamento pequeno-burguês de toda uma geração durante a guerra colonial. Claro que um dos motivos das lembranças do protagonista em relação à guerra serem tão profundas e doloridas, se deve ao fato de o protagonista ter lutado do lado errado, ou seja, ao lado do opressor. Em todo seu relato durante a noite, várias críticas são dirigidas a Portugal e à ditadura do Estado Novo como um todo, mas não é suficiente, por isso mesmo que sua dor era de fato sentida no momento do choque, do trauma.

Como vimos, o relato do protagonista pelo fato de não seguir uma estrutura cronológica, acontecimentos banais da infância ou da fase adulta no período da universidade, por exemplo, se misturam com os relatos da guerra, com cenas de mutilações, torturas e operações na selva de Angola. Bergson diz que a memória induzida, ou seja, aquela gama de lembranças provocadas propositalmente por quem lembra, pode seguir caminhos diversos, como um interesse, de fato, em relatar os acontecimentos passados por necessidade prática (talvez a escrita de uma autobiografia ou de algum relato sobre a guerra).

Levando em consideração as teorizações de Bakhtin sobre autor-pessoaautor-personagem, pois não se deve cair no erro de afirmar categoricamente, como vimos, que o relato do protagonista anônimo, que é médico psiquiatra que serviu no exército português durante a guerra colonial em Angola (assim como António Lobo Antunes) não é autobiografia. Por mais que Lobo Antunes se utilize de elementos autobiográficos e da metalinguagem, seu protagonista é outra entidade que não a sua própria, ou seja, faz parte do universo literário, ficcional que, mesmo tendo elementos correspondentes naquilo que se pode chamar de real, não faz parte dele. Afirma Bakhtin:


A própria linguagem literária – falada e escrita -, já sendo única não só por seus traços linguísticos abstratos, mas também pelas formas de assimilação desses elementos abstratos, é estratificada e heterodiscursiva em seu aspecto semântico-material concreto e expressivo (BAKHTIN, 2015, p. 63).


Philippe Lejeune, importante teórico da autobiografia, afirma que esse termo pode ser mal interpretado ou até mesmo ser ambíguo. Há de se levar em consideração a etimologia e também certos neologismos.


A invenção de uma nova palavra corresponde à tomada de consciência pela qual a palavra existente ("memórias") não é mais satisfatória. A palavra corresponde a um fenômeno radicalmente novo na história da civilização [...]: o costume de contar e publicar a história de sua própria personalidade. Como o diário íntimo, que aparece na mesma época, a autobiografia é um dos sinais da transformação da noção de pessoa e é intimamente ligado ao início do começo da civilização industrial e à chegada da burguesia ao poder (LEJEUNE, 1971, p.10).


É evidente que os elementos heterodiscursivos são levados em consideração em uma obra híbrida e difícil de ser classificada como a de Lobo Antunes, e é exatamente pelo fato de ser levado em consideração que podemos pensar que em sua própria existência histórica a linguagem é heterodiscursiva. Portanto, as armadilhas formais presentes em uma obra como Os cus de Judas e, também, Memória de elefante, podem ser atribuídas às intenções do autor, em alguns casos, e em outros ao próprio acaso.

As armadilhas deixadas por Lobo Antunes durante todo o livro têm o objetivo de deixar o leitor ainda mais à sombra, sem lhe entregar nada de graça. Os elementos reconhecidamente autobiográficos servem exatamente para isso, para lançar escuridão, nunca iluminar. Em outro fragmento do romance, quando o protagonista relata à mulher anônima do bar sua rotina ao chegar em casa todas as noites, pode-se notar certa alteração na precisão de seus relatos, ou seja, a memória induzida vai sendo substituída pela memória aprendida.


Cá estamos. Não. Não bebi demais mas engano-me sempre na chave, talvez por dificuldade em aceitar que este prédio seja o meu e aquela varanda lá em cima, às escuras, o andar onde moro. Sinto-me, sabe como é, como os cães que farejam intrigados o odor da própria urina na árvore que acabaram de deixar, e acontece-me permanecer aqui alguns minutos, surpreendido e incrédulo, entre as caixas de correio e o elevador, procurando em vão um sinal meu, uma pegada, um cheiro, uma peça de roupa, um objecto, na atmosfera vazia do vestíbulo, cuja nudez silenciosa e neutra me desarma. Se abro o meu cacifo não encontro nunca uma carta, um prospecto, um simples papel com o meu nome que me prove que existo, que habito, que de certa maneira este lugar me pertence (ANTUNES, 2003, p. 142).


O encontrar-se consigo próprio ou a tentativa (necessidade?) de encontrar-se consigo próprio é uma situação dramática, uma situação de alarme. Principalmente porque o protagonista, ao retornar da guerra em Angola, deixou de existir. O psiquiatra, quando retorna, perde a família e com isso a convivência diária com as filhas, o que acarreta uma série de outros conflitos pessoais e profissionais. Esse turbilhão de acontecimentos não esperados são fundamentais para o protagonista substituir, sem perceber, pois é a memória aprendida que age, o presente real por um passado idealizado.

Como boa parte de seu relato é formado por um discurso obscuro e brumoso, muito por causa da mudança progressiva que o protagonista vai sofrendo por decorrência do álcool, as reminiscências e lembranças, em alguns momentos, são substituídas por delírios.


(...) continuo a pensar-me sozinho na noite destas praças, destas melancólicas avenidas sem grandeza, destas transversais secundárias como afluentes, arrastando consigo capelistas suburbanas e cabeleireiros decrépitos, Salão Nelinha, Salão Pereira, Salão Pérola do Faial, com penteados de revistas de modas colados ao vidro das janelas. Em casa, a alcatifa bebe o som dos meus passos reduzindo-me ao eco tênue de uma sombra, e tenho a impressão, ao barbear-me, que quando a lâmina me retirar das bochechas as suíças de Pai-Natal mentoladas de espuma, apenas ficarão de mim as órbitas a boiarem, suspensas, no espelho, indagando ansiosamente pelo corpo que perderam (ANTUNES, 2003, p. 134).


O tom delirante assumido por Lobo Antunes em vários momentos de Os cus de Judas, como se o protagonista vivesse em um pesadelo do qual não consegue acordar e é atormentado por lembranças o tempo todo, passa a ser o que o guia em seus solilóquios intermináveis. Há de se levar em consideração que ele narra sua história a alguém, mas a mulher que o ouve e no final vai com ele para seu apartamento, em momento algum ganha voz. O pouco que sabemos sobre a mulher que se resigna a lhe escutar são impressões breves não muito específicas.


Espere aí, vou acompanhá-la à porta. Desculpe o tempo que demoro a levantar-me, e, em vez de má educação, peço-lhe que veja nisso apenas o lamentável resultado do excesso de uísque, da noite sem sono, e da emoção do meu longo relato que está chegando ao fim. Aliás, amanheceu: ouvem-se distintamente as camionetas das obras na rua, um autoclismo qualquer, no andar de cima, anuncia o despertar dos vizinhos. Tudo é real agora: os móveis, as paredes, o nosso cansaço, a cidade demasiado cheia de monumentos e de gente como uma cómoda com muitos bibelots no tampo, que amorosamente odeio. Tudo é real: passo a mão pela cara e a lixa da barba por fazer arrepela-me a pele, a bexiga repleta incha-me a barriga o seu líquido morno, pesada como um feto redondo que geme (ANTUNES, 2003, p. 234).


Esse fragmento deixa bem claro que o tom assumido pelo protagonista é de um desabafo melancólico, no qual há uma espécie de desistência de buscar, ou de tentar buscar, mudanças no presente, já que o trauma é irreparável. Aliado ao trauma da guerra está a dificuldade de suas relações pessoais, principalmente com suas filhas e ex-esposa. Percebe-se a desistência de encontrar sentido para sua vida quando ele assume que o agora é real, ou seja, se só o agora é real, aquilo que faz parte do passado e só é possível chegar a ele através da memória, seja ela qual for, não o é. Tratar os traumas e marcas do passado como acontecimentos abstratos e inventados é parte da negação na qual está inserido intensamente. O que o faz sofrer ainda mais e seu drama ser ainda mais intenso é o fato de que ele percebe sua negação, mas através de uma realidade paralela, superficial, e assim tenta, sem sucesso, superar sua crise.


Tudo é real, sobretudo a agonia, o enjoo do álcool, a dor de cabeça a apertar-me a nuca com o seu alicate tenaz, os gestos lentificados por um torpor de aquário, que me prolonga os braços em dedos de vidro, difíceis como as pinças de uma prótese por afinar. Tudo é real menos a guerra que não existiu nunca: jamais houve colónias, nem fascismo, nem Salazar, nem Tarrafal, nem PIDE, nem revolução, jamais houve, compreende, nada, os calendários deste país imobilizaram-se há tanto tempo que nos esquecemos deles, marços e abris sem significado apodrecem em folhas de papel pelas paredes, com os domingos a vermelho à esquerda numa coluna inútil, Luanda é uma cidade inventada de que me despeço, e, na Mutamba, pessoas inventadas tomam autocarros inventados para locais inventados, onde o MPLA subtilmente insinua comissários políticos inventados (ANTUNES, 2003, p. 237 - 238).


Reparemos que aquilo que o protagonista afirma ser real é anterior ou posterior à guerra em Angola, e o período que esteve no continente africanovinte e sete meses, faz parte de uma sombra, um pesadelo difícil de acordar. Os quase três anos que o médico passou em Angola são sua maior fonte de sofrimento que, constantemente, ajudam a anular seu presente como algo promissor tornando seu futuro bastante incerto, envolto em uma névoa de dúvida, negação e sombras. Na tentativa de superar seus traumas, mesmo não admitindo em seu relato, o médico busca através dos malabarismos mnemônicos que tece, principalmente quando admite estar escrevendo o que narra, tornar a fonte (ou as fontes) de seu sofrimento menos abstrata através de um conceito abstrato, que é a memória.


*Texto adaptado da dissertação de mestrado O pesadelo pós-colonial: identidade e memória na narrativa de António Lobo Antunes, de Daniel Osiecki, defendida em 2018.

terça-feira, 14 de junho de 2022

ESSA CURITIBA EU VIAJO

 


Casa de Dalton Trevisan. Curitiba.
Foto: Diana Nagorski


Desde os anos quarenta que paira uma sombra sobre a cidade de Curitiba. Lá do alto da Rua Ubaldino do Amaral, esquina com a Amintas de Barros, no Alto da XV, um vampiro que não aparece durante o dia e persegue inocentes desavisados durante a noite, profetiza: viverão sob minha sombra, pobres mortais! 

A maldição segue viva até hoje. Hoje, dia 14 de junho de 2022, dia em que Dalton Trevisan (lembra uma espécie de corruptela de Transilvânia!) completa 97 anos de idade, mais de quarenta livros publicados em mais de meio século de literatura, ainda o saudamos. 

Que privilégio o nosso de termos o maior escritor brasileiro vivo. É particularmente especial Dalton ser prata da casa, sobretudo por Curitiba ter uma classe média extremamente cafona, deslumbrada, provinciana com laivos de moderna, mas não consegue ser nada além de kitsch e conservadora. Ok, sei que são adjetivos demais, mas é difícil ser curitibano e não se apegar a algumas dessas descrições.

Dalton, do alto de seu quase centenário, viu muita coisa, conheceu muita gente e, falem bem ou mal, é nossa maior referência literária. Ponto. Só um escritor avant la lettre como ele, em meados da década de 40, em uma província na periferia do Brasil, teria capacidade, competência e coragem de criar um periódico como o Joaquim. Lembremos que Curitiba ainda era bastante apegada a uma espécie de simbolismo tardio, sob a batuta (de grandes poetas, diga-se de passagem) de Emiliano Perneta, Dario Vellozo, Antônio Braga, Silveira Neto, Júlio Perneta e outros.

Dalton surge como um furacão, já rompendo com seus antecessores e, como não podia ser diferente, consigo próprio, renegando suas primeiras obras. Emiliano Perneta, um dos alvos preferidos do vampiro, é chamado de "poeta medíocre", na edição de Junho de 1946 da Joaquim. Escreve Dalton:

"Emiliano Perneta foi uma vítima da província, em vida e na morte. Em vida, a província não permitiu que ele fosse o grande poeta que podia ser, e, na morte, o cultua como sendo o poeta que não foi"...

Fragmento que ilustra bem a pena ferina do vampiro e que foi emulado à exaustão por muitas gerações posteriores. Muitos foram bem sucedidos, outros se tornaram verdadeiros pastiches. Outros, ainda vivem à sombra pesadíssima desse vampiro metafísico, desse ser que há décadas é tão gigante quanto sua própria obra. 

E é assim, vivendo sob sua sombra opressora, que saúdo seus 97 invernos nessa província fria, escura e reacionária. A Curitiba do vampiro sim, essa e não a outra, a de verde e amarelo, com amor, viajo, viajo, viajo...

  

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Poeta curitibano lança primeiro romance


Daniel Osiecki, poeta curitibano,
lança em junho seu primeiro romance,
Veste-me em teu labirinto.


 

  

É bastante comum escritores que começam na narrativa mais curta, ou na poesia, experimentarem aventuras mais extensas no romance. E atualmente também é muito comum autores não se preocuparem tanto com delimitações de gênero. Escreve e pronto!


Daniel Osiecki, poeta e editor curitibano, com o romance Veste-me em teu labirinto se aventura em um terreno que não lhe é tão comum em sua produção literária. A breve narrativa (ou narrativas?), com pouco mais de 100 páginas, conta as aventuras, agruras e peripécias de Caetano, um professor de música que deixa um diário para um amigo escritor publicar. Mas há um porém: não é o próprio Caetano que entrega os seus diários para o amigo escritor, mesmo porque Caetano já morreu, mas alguém que ficou com o manuscrito e aparece no livro muito tempo depois.


O leitor e a leitora perceberão que há muitas camadas no romance; muitas narrativas que se misturam, muitas vozes. Não sabemos se o diário que está sendo mostrado ao leitor pelo editor que organiza o texto de Caetano (mais um labirinto aqui, pois o nome do editor é Daniel) é de fato de Caetano, ou se é recriação de Daniel (o autor-personagem-narrador). 





Conforme os fragmentos vão se sucedendo, as vozes do escritor e do autor do diário se entrelaçam, e um painel intrincado de sobreposições discursivas vão se completando. Romance que flerta com a narrativa epistolar e com a autoficção, Veste-me em teu labirinto prega peças no leitor e provoca reflexões sobre vida, amizade e escrita.



Serviço:

Veste-me em teu labirinto (romance)

Caravana Grupo Editorial

14x21

134 páginas

R$ 54,90



Daniel Mascarenhas Osiecki nasceu em Curitiba, em 1983. Escritor e editor, publicou os livros Abismo (2009), Sob o signo da noite (2016), fellis (2018), Morre como em um vórtice de sombra (2019), Trilogia Amarga (2019), Fora de ordem (2021) e 27 episódios diante do espelho (2021). É editor-chefe da Revista TXT e editor-adjunto na Kotter Editorial. Mestre em Teoria Literária e organizador do sarau-coletivo Vespeiro - vozes literárias.



ESTRELA DIFUSA

  O tempo é o fator que talvez possa explicar melhor algumas coisas que simplesmente não escolhemos; ou melhor, insistimos em dizer que não ...