domingo, 22 de março de 2015

A CENA

* Por Mateus Senna
 
Em pleno mês de Março, Renatinho, sentado na banqueta mole de madeira molhada, contemplava os Santos da capelinha do botequeiro. “Ora bosta de Santos: Expedito, burro; Francisco, pobre; Benedito, preto! Cadê a porra do São Renato?”. Gole em pinga. Gole em cachaça. Golegolegole na gasolina do posto da esquina. Passa pra lá! Gritava o frentista. Bêbado maldito! Dizia o mendigo. “Sou o rei, o Rei Nato!”. Fechava Março com aguardentes, queimando o resto de verão. No passo torto deslizou o calçadão da rua XV; tropeçou no caminho dos cegos, caiu no chafariz, vomitou nalguns orelhões e urinou no chapéu da estátua prateada.  Avistou uma biblioteca. “Palácio de Rei Nato! Aí hei de ser”, abriu alas frente aos seguranças, entrou pelo lado da saída, fazendo o alarme anti-furto apitar, “Quem ousa roubar meus livros? Cobro no mínimo R$2,99 por essas pérolas!”. Senhor, retire-se. Pedia o segurança. “Seu cu, ó servo!”. Senhor, por favor. “Mete-te em teu lugar, vassalo insolente, há de se ver com minha justiça caso a mim se dirija novamente”. Pois bem. Um usuário irritado, brabo de tanto ler, pegou dom Rei Nato pelo colarinho, encaminhou-lhe porta a fora; um pontapé, soco na boca do estômago, cuspe bem dado na cara, recitou Batatinha quando nasce/ esparrama pelo chão/ o ébrio ego do tolo Santo Rei deposto. Profano bobo-da-corte.
 
*Mateus Senna é curitibano. Escritor e professor, já publicou nos periódicos Relevo e Flaubert.

A fio – entre a academia e a poética do cotidiano


    (Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Janeiro 2015)
 
Os leitores de poesia estão cada vez mais restritos aos meios acadêmicos, salvo alguns grupos alternativos isolados, como o bom grupo Epopeia, de Curitiba. Há mais restrição ainda quando se trata da poesia produzida em Curitiba, pois o público curitibano é autofágico, além de o gênero poético não ser muito popular.

Em Curitiba há os clássicos medalhões que boa parte do público conhece (pelo menos os nomes) que fazem parte da cena local, como Helena Kolody, Paulo Leminski, Marcos Prado (mais comentado do que lido) e outros que fazem parte de antologias hoje só encontradas em sebos, como Rocha Pombo e Emiliano Perneta.

A poesia brasileira atual é bastante heterogênea, e em Curitiba não é diferente. Há um número bastante razoável de bons poetas na ativa, como Luiz Felipe Leprevost, Renato Vieira Ostrowski, Willian Tecca, Ivan Justen Santana, Álvaro Posselt, Luci Collin, Ricardo Pozzo, Otto Leopoldo Winck, Marcelo Sandmann e vários outros.

Dos poetas mais relevantes de sua geração, Marcelo Sandmann transita entre a academia e a música popular, entre o lirismo e uma espécie de pós-concretismo. Marcelo Sandmann nasceu em Curitiba, em 1963. Professor de literatura da UFPR, publicou Lírico renitente (Rio de Janeiro: 7Letras, 2000), Criptógrafo amador (Curitiba: Medusa, 2006), Na franja dos dias (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012) e A fio (Rio de Janeiro: 7Letras, 2014).

A fio é composto por 37 poemas e Sandmann transita entre versos livres, sonetos, alexandrinos, demonstrando domínio notável do fazer poético em formas diversas. Como domina com precisão a forma fixa, Sandmann provoca o leitor a forçar seu repertório poético e a desvendar seus meandros intrincados.

Há em boa parte dos poemas um flerte com o óbvio em que, em várias situações, lembra Drummond. Inclusive há algumas citações ao mestre de Itabira. No poema Orgulho da influência nota-se essa recorrência.

O poeta ideal?

Drummond,

Pelo crivo de Cabral.

(P. 33)

Há de se levar em consideração em vários poemas a preocupação com a metalinguagem, como no poema Menos que menos.

Menos,

Eu quero menos.

(Menos que menos.)

Das reticências,

um ponto

apenas.

Somente o mínimo, o ínfimo.

Talvez nem mesmo,

por exagero,

o pingo no

i.

(p.39)

No poema Elpenor Revisited (take 5) é interessante o encontro entre erudição e informalidade, o que aponta certo desapego com formas poéticas tradicionais. Sandmann assimila com propriedade rupturas com o tradicional tão presentes na chamada pós-modernidade, assim como no belo Última ceia, no qual há uma releitura do mito bíblico, o que também ocorre no poema Dois excertos bíblicos (primeira e segunda quedas).

Poeta extremamente relevante no cenário brasileiro atual, Marcelo Sandmann mostra ter domínio da técnica poética desde poemas mais elaborados, com formas fixas, a versos livres, mais leves que flertam com o óbvio do cotidiano.

Última ceia

E eis que algumas palavras

Saltam para fora

De um rio caudaloso e barrento

E estatelam-se na pedras

E ressecam ao sol

Peixes que salgo

Com o suor do meu rosto

Preparo

Reparto

Mastigo

Aqui com vocês

Nesta mesa comum

Ainda uma vez

Nossa última ceia.

(p.56)  

Jaboc: labirintos narrativos


                      (Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Dezembro 2014)
 
Escrever sobre o ato de escrever não é novo nem original na ficção, mas tema recorrente abordado por diversos escritores. João Cabral de Melo Neto, Drummond, Vergílio Ferreira, Cristóvão Tezza, Cezar Tridapalli se ocuparam, em algum momento de suas respectivas produções literárias, com a metalinguagem. Escrever sobre o ato de escrever parece não interessar tanto um público não afeiçoado à literatura mais elaborada, pensada, com enigmas deixados para o leitor, mas mesmo assim foi tema bastante explorado por autores diversos.

Para ficar em nossas paragens, fora os já citados Tezza e Tridapalli, Otto Leopoldo Winck é um dos escritores que se ocupou com a metaliteratura no belo Jaboc (Garamond, 317 pag.), romance de 2006 que só agora descubro. Otto Leopoldo Winck nasceu no Rio de Janeiro, em 1967. Winck vive em Curitiba desde anos 80. É doutor em estudos Literários pela UFPR e professor de literatura na PUCPR. É poeta, contista e romancista.

Joboc, seu primeiro romance, narra as desventuras de um professor universitário que, em meio a leituras de Fernando Pessoa e muito blues de Muddy Waters, Robert Johnson, Jimmi Hendrix e tantos outros, está escrevendo um romance, e esse processo de escrita é repleto de percalços, sofrimento e muito álcool. O livro que o protagonista escreve é sobre um homem que está escrevendo um livro, técnica denominada de mise en abyme, história dentro da história.

Durante toda a narrativa há referências sugeridas, mas facilmente identificáveis, a Curitiba e à cena literária local, com suas batalhas de ego de escritores provincianos, com suas pequenezas e idiossincrasias. É interessante ressaltar que Winck critica essas pequenezas literárias à distância, através de seu personagem, o que lhe confere certo distanciamento ao apontar as mazelas e mesquinharias literárias de um meio pretensamente erudito, mas que ao ser ironizado, nada mais é do que um desfile de escritores blasé que buscam, desesperadamente, terem mais relevância do que suas próprias obras.

Conforme a ação vai transcorrendo, o protagonista vai sofrendo uma espécie de mutação em seu modo de agir, pensar, escrever. De acadêmico de reputação ilibada, trabalhador assíduo e bem quisto no departamento de letras de uma universidade particular a funcionário relapso, mal vestido, deprimido, beberrão e imerso no seu projeto particular de escrever um livro a qualquer preço. Somada a frustrações profissionais, há também uma iminente crise temporal, pois sente-se velho e já impossibilitado de relacionar-se como era no passado. O símbolo disso é a relação que inicia com Virgínia, sua aluna do primeiro ano de Letras, linda e transbordando juventude, como se fosse seu nêmesis.

Uma das chaves (ou dicas sutilmente deixadas por Winck) para a compreensão do romance é seu título, que é uma alusão a Jacó, personagem do antigo testamento que em uma luta com um anjo misterioso muda completamente seu modo de agir se rendendo ao chamado divino, o que é uma bela metáfora ao fazer literário, pois simboliza a imagem do escritor em uma batalha feroz com as palavras. Se o escritor se rende ou não, não é relevante, mas sua forma de buscar seu momento nevrálgico é o que vale no fim.
 
A questão de sempre estar fazendo a mesma coisa sem ter resultados é bastante evidente no romance, sendo simbolizado pelo mito de Sísifo, que segundo a mitologia grega, levava uma enorme pedra ao alto de uma montanha. A pedra rolava para baixo e Sísifo a levava para o alto da montanha novamente e assim sucessivamente, sem nunca acabar. Portanto, a batalha do protagonista com as palavras e com o fazer literário é simbolizada pelos mitos de Jacó (hebraico) e Sísifo (grego).

Jaboc é o romance de estreia de Otto Leopoldo Winck e no ano de seu lançamento, 2006, venceu o Prêmio Nacional de Literatura Academia de Letras da Bahia. Com domínio da técnica narrativa e com repertório teórico bastante vasto, ao qual Winck recorre com frequência durante todo livro, Jaboc em momento algum é enfadonho ou soa pretensioso, pelo contrário, é ágil e a leitura flui do início ao fim. Winck acertou a pena neste seu primeiro romance e espero que Jaboc não tenha sugado toda sua energia.

NOTA SOBRE O TEXTO "A CAPITAL DOS EFÊMEROS"

Em novembro do ano passado, em minha coluna no Jornal Relevo, Terra incógnita, publiquei um artigo sobre o livro Golegolegolegolegah!, do escritor curitibano Márcio Renato dos Santos. Como em meu artigo faço algumas ressalvas ao livro do ilustre escritor, o Sr. Santos passou a me insultar nas redes sociais e a insultar o Jornal Relevo, nos chamando de canalhas, amadores, tendenciosos, medíocres, etc. Jamais escrevi uma resenha sequer para insuflar egos carentes e personalidades inseguras que se aproveitam de polêmicas para se promover. E foi o que aconteceu. Fica aqui minha gratidão ao Jornal Relevo pela parceria e pelo apoio, assim como minha gratidão a vários escritores amigos que fizeram suas minha causa contra a choradeira do gurizinho mimado das araucárias.

A capital dos efêmeros

(Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Novembro 2014) 

Certa vez, ainda durante a graduação, um professor afirmou que Curitiba era a capital dos contistas. Muito devido a Dalton, pois o vampiro era e continua sendo um mestre que influencia e habita o imaginário coletivo da província, mas o professor também atribuía aos novatos, baseado em suas leituras de contistas mais novos, certo medo de se aventurarem na narrativa mais longa.

Discordando um tanto do professor, me deparo com frequência com contistas que não parecem, de forma alguma, serem temerosos em partir para narrativas mais longas, densas ou complexas, mesmo porque narrativa longa não é sinônimo de densidade ou complexidade. Vários dos bons contistas curitibanos (ou que produzem aqui) se aventuram nesse gênero ingrato por terem certo domínio da técnica da narrativa mais concisa. Bons exemplos de uma safra nova e muitíssimo competente de contistas são nomes como Rui Werneck de Capistrano, ReNato Bettencourt Gomes, Paulo Sandrini, Severo Brudzinski, Homero Gomes e vários outros.

Naturalmente às vezes criamos expectativas demais e nos decepcionamos com alguns escritores, caso de Márcio Renato dos Santos. Curitibano, nascido em 1974, Márcio Renato dos Santos é jornalista e mestre em Estudos Literários pela UFPR. Publicou seu primeiro trabalho de ficção em 2010, o belo livro de contos Minda-Au (Record, 2010. 80 págs.) Seu trabalho como contista nesse primeiro livro é bastante interessante, mostra um escritor preocupado com a forma e cuidadoso em não soar pseudo-experimental.

Já em seu livro Golegolegolegolegah! (Travessa dos Editores. 2013, 72 p.), Márcio Renato dos Santos deixa a desejar. O breve volume é composto por seis contos que são bastante ágeis, o que torna sua leitura fácil, mas enfadonha. Há durante todo o livro uma necessidade de soar como um autor pós-moderno, nonsense, o que depõe contra o livro como um todo, pois tudo é muito forçado, engessado, repleto de amarras estilísticas que se perdem no vácuo deixado pelo autor.

No conto Você tem à disposição todas cores, mas pode escolher o azul, o narrador assume um tom confessional, ele narra o que vê da maneira que bem entende para um possível interlocutor. Há abertamente a questão da metalinguagem, o que por vezes salva um ou outro fragmento. A coloquialidade é uma constante em vários contos, o que a princípio começa bem, mas depois torna-se cansativa e um tanto forçada.

A questão do distanciamento entre as pessoas, da ausência de comunicação na era moderna são motes dos contos como se fossem vozes que permeiam toda a obra. O conto Digital reverb delay é um dos bons contos do livro, digno do autor de Minda-Au. Nesse texto o narrador tem consciência de sua limitação como pessoa e de sua impossibilidade em se comunicar.

Mas, tenho de admitir, o que sempre me deixou calado foi a sensação de que eu nunca tive nem tenho nada a dizer, nem como dizer e, por isso, não precisava falar. Afinal, a gente abre a boca pra dizer as coisas, não é? Como nunca tive nada a dizer, minha opção sempre foi pelo silêncio.  (p.32)

O narrador admite não ter absolutamente nada a falar, e esse nada o representa. Há um embate existencial bastante significativo nesse conto.  

O conto que segue, Nevoeiro, é o mais relevante do livro. Nesse conto há a constatação do narrador de encontrar-se consigo próprio em todo lugar. A questão da empatia aparece aqui como uma espécie de antídoto contra a incomunicabilidade entre as pessoas. A predominância do plano onírico se sobressai ao plano real, dando a entender que o indivíduo apenas sonha em se comunicar, em sair de sua redoma imaginária, e não age por medo ou por algum motivo qualquer. O narrador diz não saber se sonha ou se de fato aconteceram as ações que narra.

Também parei de sonhar. O intervalo entre deitar na cama e acordar no dia seguinte era preenchido sabe-se lá com o quê. Eu não tinha mais insônia. Nem sonhos. (p.48)

A atmosfera onírica confere ao conto uma densidade ainda não experimentada nos contos anteriores. O grau de sugestão (as ações são sugeridas) são bastante relevantes para a composição da narrativa.  

Os dois últimos contos do volume, Zé Ruela e Cento e noventa, não se diferenciam muito dos primeiros, ou seja, nada muito relevante na forma nem no conteúdo, o que, até certo ponto, é um aspecto positivo, pois Márcio Renato dos Santos não é um escritor conteudista.

Um aspecto bastante relevante do livro é seu projeto gráfico, que é belíssimo. Aliás, é praxe da Travessa dos Editores fazer ótimos projetos gráficos. O livro é composto por belas ilustrações de Marciel Conrado. Mesmo que Golegolegolegolegah! apresente mais erros do que acertos, Márcio Renato dos Santos é um dos contistas relevantes da nova geração da literatura brasileira.    

Passagem do Aqueronte: Severo Brudzinski entre o onírico e o real


                         (Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Outubro 2014)
 
É surpreendente a quantidade de contistas novos que tem publicado em Curitiba nos últimos anos. Tenho me ocupado nesta coluna em resenhar vários desses autores, como Renato Bettencourt Gomes, Renato Ostrowski, Homero Gomes, Rui Werneck de Capistrano, Severo Brudzinski e sem contar, claro, os mais que consagrados Jamil Snege e Dalton Trevisan.

Verdadeiro celeiro de grandes contistas, Curitiba é um espaço literário bastante prolífico àqueles que buscam seguir os passos do grande mestre Trevisan. Mas como já afirmei em texto anterior, há vida inteligente em Curitiba depois de Dalton, Leminski e Tezza. Mais um desses novos autores de nossas paragens que descubro é Severo Brudzinski.

Severo Brudzinski nasceu em Curitiba em 1973. É graduado em Direção Teatral pela FAP. Publicou os livros Os amores e mortes de Gustavo Carbel (2005), Líricas (2008) pela Stultifera Navis e Passagem do Aqueronte (2012) pela Kafka. Coletânea de contos bastante singular, Passagem do Aqueronte transita entre o onírico, o imaginado e o delírio, formando um corpus narrativo coeso e muito bem estruturado.

O pequeno volume é composto por onze contos e todos os textos são interligados por um único elemento, a autocitação. Em todos os contos Severo é o protagonista de situações diversas, porém todas envoltas a uma atmosfera labiríntica e nonsense. O primeiro conto, Tabacaria, é uma clara alusão ao famoso poema de Fernando Pessoa.

Os pedestres dissimulam os olhos sob os óculos escuros, ocultam os rostos nas golas levantadas dos sobretudos e sob chapéus negros, escondem as cabeças. Um deles para diante da porta de aço do botequim e entra sem pedir licença.

Você é o Esteves sem metafísica? Quer saber o homem que traz sobre o rosto uma máscara de malha branca com um buraco na boca.

(p.8)

O Severo protagonista de Tabacaria está em um bar, e sua atmosfera soturna se contrapõe à atmosfera da rua que é clara, repleta de vida e de pessoas. Há aqui um embaralhamento de tempos físico e psicológico, Severo mistura passado, presente, realidade e sonho em um único plano. Talvez haja aqui a influência do álcool sobre o protagonista que não tem controle daquilo que vê ou sente.

Outro conto que merece destaque é Cama do Céu, Cama do Inferno, que descreve, no início, uma relação sexual com minúcias. Até aqui todos os contos começam, geralmente, simulando narrativas convencionais e depois assumem aspectos mais sombrios, oníricos e noir. As ações não são claras, nunca se sabe de fato o que está acontecendo.

No conto seguinte, Nas fossas, Brudzinski faz uma breve incursão no microconto, que relata um campo de batalha. Como é recorrente no livro todo, toda ação é sugerida. A ação transcorre em meio a uma névoa obscura de seres decadentes e melancólicos, fato que também é perceptível no conto que dá título ao livro, Passagem do Aqueronte. Severo constrói nesse texto imagens surreais nas quais o absurdo assume proporções consideráveis. Tzvetan Todorov chama essa dualidade entre o fantástico e o real de fantástico-maravilhoso, que é quando elementos sobrenaturais são aceitos no universo da realidade e o irreal vive em harmonia com o real.

As ações vão se sucedendo de forma vertiginosa e consequentemente ficando mais obscuras. Há o predomínio total da sugestão sobre a ação. É sonho? Ilusão? Devaneio? Em alguns momentos a insistência em soar nonsense se torna um tanto exagerado e enfadonho, mas há mais acertos do que erros.

Severo Brudzinski, o autor do livro, não o personagem, deixa o melhor conto para o final, A praça. Nesse texto Brudzinski se utiliza de um artifício que faz com que o conto de fato seja o melhor do livro, a metalinguagem. Nesse conto há a desconstrução da estrutura estanque da narrativa convencional. Ao se incluir em um texto, o personagem automaticamente transforma a narrativa em metaliteratura.

Quanto tempo levou?

Não sei...Alguns dias. Talvez anos. Sei lá, uma vida inteira. Um momento. Quem sabe?

E por que ela nos observa o tempo todo?

Quem?

Essa pessoa que está lendo o livro com as mãos suadas.

Ela é nossa testemunha.

(p.109)

A seguir Brudzinski tece algumas considerações bastante pertinentes sobre o fazer artístico como um todo.

Mas por que sob os olhos dela? Tudo isto é muito estranho. Só aqui, sob o olhar de pessoas como essa é que temos existência. Só aqui nesta praça, neste jardim secreto. Cada vez que olhos curiosos percorrem as linhas dessas frases, nós viveremos.

(p.110)

É uma ótima visão sobre o ato de escrever e sua finalidade (se há alguma). A literatura só existe de fato quando é lida, observada, ouvida. Severo Brudzinski encerra seu Passagem do Aqueronte com saldo positivo. Livro coeso e bem estruturado, o volume mantém sua qualidade em todos os contos.

Sísifo desatento - sem pedras nas sombras


                     (Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Setembro 2014)
 
Segundo a mitologia grega, Sísifo, filho de Éolo e Enarete, era um dos mortais mais sábios. Por ser um dos maiores blasfemos da Terra, Sísifo é punido pelos deuses e condenado a carregar uma pedra até o alto de uma montanha sem ter como segurá-la no topo, e a pedra volta ao início e esse trabalho se repete por toda a eternidade.

O trabalho de Sísifo de sempre fazer a mesma coisa e nunca conseguir terminar é uma metáfora sobre a insatisfação, ou seja, não importa quanto tempo alguém se dedique a um ofício, esse ofício, de uma forma ou de outra, dificilmente será concluído completamente. Fator esse que se aplica à literatura e a seus intrincados meandros estilísticos que parecem, para muitos autores, ser um processo contínuo de sofrimento, demora e frustração.

Para Homero Gomes esse processo longo de escrita e reescrita pode ser análogo ao trabalho de Sísifo, mas o ato de escrever alcança significados mais idiossincráticos. Homero Gomes nasceu em Curitiba em 1978. Publica em vários periódicos e em 2013 publicou seu primeiro livro, Solidão de Caronte (Patuá, poesia). No dia 21 de junho deste ano Homero Gomes publicou seu primeiro livro em prosa, o volume de contos Sísifo Desatento (Terracota, 156 pág.) no Paço da Liberdade, em Curitiba.

O livro é composto por 28 contos divididos em quatro seções e mais uma seção no final, uma espécie de micro novela intitulada O livro azul-turquesa. Nota-se na maioria dos contos um aniquilamento existencial do indivíduo de diversas formas, como no conto Fulano de Tal, que abre o volume:

Então, arrastou a de coxa tatuada para outro lugar. Por causa do ar da noite, a de coxa tatuada estava receptiva. Ele não quis saber de risos nem de motivos. Não esperou por ela. Conseguiu o que pretendia surdamente enquanto perguntava seu nome: Olga. Saiu caminhando pelo centro da cidade prestes a amanhecer. A província amanheceu. (p.18)

Há uma solidão da qual os personagens dos contos não conseguem, ou não querem, ou não podem, se livrar. Os ambientes urbanos são muito bem explorados por Homero, o que confere um tom bastante soturno às narrativas, repletas por párias, estupradores e seres que perambulam, geralmente por ruelas escuras, em busca de algo; seja de afeto, de prazer ou de algo ainda não descoberto. A questão da não existência do indivíduo ou, da noção de inexistência metafísica, é muito recorrente.

Um dos pontos altos do livro são as epígrafes presentes em cada conto. Desde Maurice Merleau-Ponty à banda de heavy metal Metallica. Homero além de se mostrar um competente criador de imagens e situações, mostra que assimila bem questões caras à pós-modernidade, como o embaralhamento formal e estilístico e a ruptura com formas tradicionais e estanques de narrativa.

No início de cada uma das 4 seções do livro há uma introdução, uma espécie de “voz” que se pronuncia, não sobre o que o leitor está prestes a encontrar, mas simplesmente reflexões, ao melhor estilo nonsense possível, que de forma bastante poética confunde, instiga e provoca a capacidade de leitores atentos. Essas questões todas estão envoltas em sombras que não se dissipam em momento algum, criando assim uma tensão extra que pouco a pouco é desvendada (ou não) pelo leitor. Em um dos melhores contos do livro, Aquilo, o flerte com atmosferas labirínticas e noir se evidencia.

O quarto estava mal iluminado. Nele, apenas uma pequena vela sobre uma cadeira e um colchão imundo. O quarto não possuía janelas, não seria possível para um ser humano viver ali. (p. 38)

Em conversa recente com o autor durante o lançamento de Sísifo Desatento, Homero Gomes diz ter levado mais de dez anos na escrita e lapidação dos contos do livro. Homero não poderia ter escolhido título melhor para o livro, que define a obra como um todo, ou seja, o trabalho de Homero Gomes se evidencia no fato de não se preocupar em dar um ponto final definitivo em seus textos, deixando lacunas. É um movimento arriscado na narrativa curta e, mesmo discordando de uma ou outra escolha estilística, Homero Gomes está mais atento que nunca.

O Beijo de Schiller: Cezar Tridapalli em veredas polifônicas


                        (Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Agosto 2014)


Superar ou manter a qualidade do primeiro livro é uma tarefa árdua e, muitas vezes, ingrata. É bastante comum entre escritores iniciantes o inverso, ou seja, renegar o primeiro livro e nunca mais reeditá-lo. Quando se publica o primeiro livro muito cedo esse é um risco que se corre. Caso de vários escritores, como Moacyr Scliar, Dalton Trevisan, Cristovão Tezza, Mariel Reis e inclusive este narrador.

Quando a primeira obra de algum escritor já foi escrita com certo domínio formal e estético a situação é diferente tanto para o autor da obra quanto para seus leitores. Caso de Carlos Heitor Cony com O Ventre, Almeida Faria (escritor português que publicou seu primeiro romance, Rumor Branco, aos dezenove anos, e foi muito bem aceito pela crítica), António Lobo Antunes com Memória de Elefante e o escritor curitibano Cezar Tridapalli com Pequena biografia de desejos, que publicou recentemente seu segundo romance, O Beijo de Schiller, vencedor do Prêmio Minas Gerais de Literatura 2013 (Arte e Letra, 272 páginas).

Cezar Tridapalli faz parte de uma prolífica geração de escritores contemporâneos que estão assumindo certa identidade literária nas narrativas mais longas, algo não muito comum em Curitiba ultimamente. Fora Cristóvão Tezza, que já é conhecido nacional e internacionalmente, temos em Curitiba bons romancistas não muito conhecidos do público, como Paulo Sandrini, Rui Werneck de Capistrano e Cezar Tridapalli, que têm obras relevantes não só no cenário local, mas são nomes que se enquadram na moderna narrativa brasileira.

Em O Beijo de Schiller, Tridapalli mistura vozes em uma trama intrincada e original, na qual há um flerte com o nonsense. Seu protagonista, Emílio Meister, é um escritor curitibano reconhecido pela crítica que atravessa uma crise em seu casamento e tem uma péssima relação com sua filha. Na volta de uma viagem a Santa Catarina, Emílio e sua esposa, Eugênia, são sequestrados por um jovem delinquente que passa a conviver com o casal em sua casa em Curitiba. À medida que o tempo vai passando o casal passa a aceitar a presença do jovem sequestrador em seu cotidiano e desiste de tentar descobrir o motivo pelo qual o jovem os sequestrou. O sequestrador parece devolver, inconscientemente, certa noção de ordem e paz ao casal atormentado pelo cotidiano.

Paralelamente à história de Emílio Meister e de seu sequestrador, há a história de Luka, protagonista do romance que Meister está escrevendo. Luka é um jovem arquiteto de 25 anos com orientações homoafetivas extremamente tenso e ainda virgem. Luka sente-se atraído por homens e mulheres, e durante as intervenções da história de Luka na história de Meister, notam-se fortes elementos sobre o fazer literário que são muito bem explorados por Tridapalli.

Como a relação de Meister com Eugênia é extremamente conflituosa, repleta por fortes embates, acusações, desafios intelectuais e discussões, vários dos impropérios que Meister dirige à Eugênia aparecem no romance que escreve. Um dos elementos mais bem explorados por Tridapalli é exatamente a metaliteratura, que forma um painel narrativo bastante denso. A polifonia torna O Beijo de Schiller um romance bastante original, pois vários dos encaminhamentos narrativos de Tridapalli foram escolhidos na medida certa, sem malabarismos estilísticos irresponsáveis. Obra de extremo valor estético escrita por um verdadeiro cultor do bom gosto, O Beijo de Schiller é um dos romances mais relevantes deste ano.  

LITERATURA, LITERATURA, EGOS À PARTE


                             (Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Julho 2014)
 
Em tempos de grandes polêmicas com relação à censura de biografias é preciso prudência por parte dos autores. Há diversos casos de disputas judiciais intermináveis que se estendem há tempos e ainda sem previsão para acabar. Nomes da música popular brasileira, da dramaturgia, literatura e de diversas áreas distintas da cultura pop passaram a vetar certas visões de seus biógrafos, consideradas por eles, biografados, ou por seus herdeiros, não muito ortodoxas, dando a entender, dessa forma, o desejo por uma abordagem mais “chapa branca”.

Em setembro do ano passado o escritor Domingos Pellegrini passou a divulgar pela internet um livro que havia escrito sobre Paulo Leminski. O motivo da divulgação de seu livro ter sido feito, a princípio,  pela internet foi a censura por parte de Alice Ruiz e suas filhas com Leminski, Áurea e Estrela. Alice Ruiz alegou que o livro de Pellegrini passava uma imagem muito forçada de Leminski, enfático demasiadamente em seu problema com álcool e seu desapego material.

A postura um tanto beat de Leminski, baseados, bebida, pobreza, nunca foi novidade para ninguém, muito menos aos seus leitores. Não aos conhecedores de sua vida, mas aos seus leitores de fato. No livro Minhas Lembranças de Leminski (Editora Geração. 199 p.) publicado no início de junho, Domingos Pellegrini faz um apanhado geral de sua relação com o “Polaco” (como Leminski é tratado no livro).

No breve relato Leminski é transformado em personagem, não sendo apenas um biografado. Personagem com voz própria, reflexões e opiniões contundentes sobre tudo que vê (de fora, pois já morreu há 25 anos). O acerto de Pellegrini no livro é basicamente na estrutura, conferindo à obra meio tom de romance e meio tom de biografia. Os narradores são alternados de capítulo para capítulo. Há o narrador Leminski, ou o Polaco, e o narrador Pellegrini, ou o Pé vermelho. Os pontos altos do livro, no entanto, são as reflexões do personagem Leminski sobre alcoolismo, cultura, literatura, política que são compostas por um humor ímpar, e isso Pellegrini faz muito bem.

Pellegrini é muito competente ao atribuir certas características ao Polaco sendo esse Leminski um personagem de ficção baseado no Leminski real. Entretanto, muito de suas lembranças de Leminski parecem especulação, mostrando um narrador (Pellegrini) preocupado em passar uma autoimagem acima de qualquer suspeita, correta, de bom rapaz. É evidente o domínio da técnica narrativa de Pellegrini, mas nos momentos em que a ficção cede espaço ao real, ele torna-se um tanto piegas e superficial. Não superficial em sua leitura sobre a obra de Leminski, que inclusive é bastante apurada, mas superficial sobre questões pessoais.

No final do livro, na seção intitulada Posts, Pellegrini reproduz na íntegra um e-mail de Alice Ruiz, no qual discorre sobre seus motivos por vetar a publicação do livro.

Caso não arrede pé do seu ‘estilo’ detrator do Paulo pessoa, fique à vontade para isso (publicar na internet). Não somos movidas a ameaças. A decisão é sua.  (p. 190)

Autorizada ou não autorizada a obra está publicada e tem certa importância. Por mais que Pellegrini se supervalorize alegando ser criativo e inventivo, ele não deixa de ter certa razão em sua originalidade. Talvez ele tenha razão, também, ao afirmar que o formato de seu livro, nada convencional para uma biografia, agradasse, principalmente, ao próprio Leminski.

ESTRELA DIFUSA

  O tempo é o fator que talvez possa explicar melhor algumas coisas que simplesmente não escolhemos; ou melhor, insistimos em dizer que não ...