sábado, 29 de setembro de 2012

Esteves sem metafísica no país dos Silvas



Em 1928 Álvaro de Campos, o revolucionário heterônimo de Fernando Pessoa, publica a obra prima “Tabacaria”. O poema é indigesto e narra pequenos flashes do cotidiano que se tornam momentos de epifania do sujeito comum. Esteves, que entra na Tabacaria (Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?) / E a realidade plausível cai de repente em cima de mim...) simboliza o indivíduo sem perspectiva em uma época sombria (entre as duas grandes guerras) que não busca nada além de viver seu cotidiano sem participar do presente e sem intenções de arquitetar algo maior para o futuro (Depois deito-me para trás na cadeira/e continuo fumando./Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.) 

É sob essa atmosfera de vidas desperdiçadas e atitudes sem sentido algum, que o angolano valter hugo mãe (assim mesmo, com letras minúsculas), descreve o cotidiano de António Jorge da Silva,   protagonista de A máquina de fazer espanhóis (2011, Cosacnaify) um barbeiro aposentado que é forçado a abandonar tudo depois que sua esposa morre e ir morar em um lar para idosos.

Em sua mudança para o lar que tem o irônico nome de Feliz Idade, Silva vai sofrendo uma espécie de embate consigo próprio e a princípio ele se revolta contra uma situação limite que parece não ter volta. No lar Silva conhece outros excluídos que também são inconformados iguais a ele, entre eles um homem que diz ser o Esteves do poema “Tabacaria”, o “Esteves sem metafísica”. Para Esteves física e metafísica caminham juntas. Sob sua ótica, a metafísica só é causadora de agonia.

quero dizer-vos que ser-se velho é viver contra o corpo. o estupor do bicho que nós somos e que já não nos suporta mais. a violência na terceira idade. (p.126)

Silva carrega uma carga de desamparo maior do que os outros. Talvez por se recusar a aceitar a nova ordem que, a priori, caracteriza a atual conjuntura, ele se despe de falsos moralismos e também de divindades hipócritas e distantes (simbolizadas aqui por uma imagem de Nossa Senhora). Tendo como base seu único recurso restante, sua memória, Silva passa a cometer pequenas crueldades contra o “divino”, sendo que a principal delas é equiparar-lhe à pobreza da condição humana. O Lar Feliz Idade serve aqui como um microcosmo de Portugal, com todas suas mazelas e, por que não? belezas. Esteves é a subversão do poema de Álvaro de Campos.

Para Silva, o que configura a gênese de sua desilusão é a perda de alguém ou de algo. Em seu solilóquio interno relembra de um fato ocorrido há quarenta anos, durante a ditadura de Salazar. Certa noite, ao fechar sua barbearia, Silva é forçado por sua própria consciência a esconder em seu estabelecimento um jovem militante do Partido Comunista Português. Na manhã seguinte ele vai trabalhar e lá encontra o jovem que, agradecido, vai embora escondido, mas promete voltar. Em suas visitas seguintes, o jovem militante tenta despertar Silva para a vida prática, despertá-lo da hibernação alienante de toda uma nação dominada pelo fascismo. Tempos depois Silva o entrega à polícia, tornando-se igual às pessoas que secretamente condenava. Talvez essa seja sua primeira derrocada moral.

Silva é quem simboliza toda uma classe sem perspectivas de mudança, não por ideologia, mas por pura alienação. É o retrato da classe média portuguesa dos anos 60. E o título do romance nesse aspecto é fundamental para a compreensão da obra. Se Portugal é uma terra tão ingrata com seus filhos, nada mais natural do que não ter uma identidade própria, uma identidade nacional, transformando os portugueses em espanhóis.

valter hugo mãe mostra uma verve poética poderosa e intrínseca em sua prosa, que é limpa e cadenciada, quase musical. O uso desmesurado do discurso indireto livre contribui para a elaboração de uma prosa poética da mais alta qualidade. Parágrafos e períodos longos, fluxo de consciência não são elementos novos na literatura contemporânea, mas quando praticados na dose certa, surtem efeitos positivos imediatos.

No final de sua narrativa, Silva tem a ilusão de ainda ter (se é que alguma vez teve) algum controle sobre a morte. Quando ele é transferido para a ala próxima do cemitério (a disposição física do lar é bastante simbólica) entregue física e mentalmente, esvai-se o resto de dignidade que possuía. Ou seja, o elemento metafísico dependendo do físico. Essa máxima é bastante pontual durante todo romance.

Livro denso de ideias, A máquina de fazer espanhóis chama a atenção por apresentar um narrador-personagem que, apesar de viver constantemente sob a pressão de uma situação limite, de alarme, consegue organizar suas ideias e pensamentos com clareza. Mas como ele o faz? A sua situação física, mental e, talvez, geográfica, não permitissem que organizasse um texto tão coeso e limpo. Mas fica a critério do leitor estabelecer (ou não) limites de verossimilhança.

          


Nenhum comentário:

Postar um comentário

ESTRELA DIFUSA

  O tempo é o fator que talvez possa explicar melhor algumas coisas que simplesmente não escolhemos; ou melhor, insistimos em dizer que não ...