segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O outro pé da sereia:do Sebastianismo à desilusão pós-colonial



A literatura africana pode ser considerada recente se pensarmos em produção de obras literárias por africanos e não por colonizadores. O primeiro livro publicado na África lusófona foi Espontaneidade da minha alma (1949), do escritor angolano José da Silva Maia Ferreira. Há de se levar em consideração o conceito de africanidade, que é a designação adotada pelos escritores africanos para referirem-se à África como sua mensagem ao mundo.

A literatura africana de expressão portuguesa inicia-se, basicamente, a partir do confronto, da tomada de uma consciência ideológica própria, de uma espécie de práxis revolucionária (não marxista) que através da conscientização do indivíduo africano torna-se independente. É uma literatura que pretende adquirir sua própria identidade e vai contra os moldes estéticos europeus.

Na literatura africana contemporânea há uma dicotomia muito clara, pois ao mesmo tempo em que há essa independência dos colonizadores portugueses, também há a permanência de certos elementos que caracterizaram a literatura predominante em África, como o historicismo, por exemplo, muito comum nas obras de autores como Luandino Vieira, Agostinho Neto e Mia Couto.

Mia Couto nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955. Formado em biologia, desenvolveu durante muito tempo atividades de jornalista e hoje divide seu tempo entre a literatura e estudos de impacto ambiental. Estreou na literatura em 1983 com um volume de poesia, Raiz de Orvalho. Ainda nos anos 80 publicou alguns livros de contos, como Vozes anoitecidas (1986), Cada homem é uma raça (1990), e mais recentemente O fio das missangas (2004). Porém foi no romance que Mia Couto se destacou mundialmente. Seu primeiro romance, Terra Sonâmbula, foi publicado em 1992. Depois vieram A varanda de Frangipani (1996), O último voo do flamingo (2000), O outro pé da sereia (2006), Venenos de Deus,Remédios do Diabo (2008) e Jerusalém (2009). (No Brasil o livro tem o título de Antes de nascer o mundo).

Mia Couto explora muito bem em seus romances a questão do fantástico, que em suas obras aparecem mais como elementos místicos africanos. O romance O outro pé da sereia é um bom exemplo disso. O livro narra duas histórias paralelas, uma em 2002, na Moçambique atual, e a outra no final de 1560 e início de 1561, entre Goa, na Índia, e Moçambique.

Em ambas as narrativas há uma gama imensa de personagens, reais e fictícios, que de uma maneira ou de outra acabam se cruzando, mesmo estando distantes 500 anos. Da narrativa atual, as personagens principais são Zero Madzero e sua esposa, Mwadia Malunga, um casal de pastores que vivem num auto exílio na longínqua região de Antigamente. O exílio é explicado no final do livro. Certa manhã, à beira do rio Mussenguezi, o casal encontra uma imagem de Nossa Senhora, e o achado vai mudar a vida dos dois, e é aqui que a história de Zero e Mwadia encontram ecos na outra narrativa, em 1560.

No início do ano de 1560, uma expedição portuguesa liderada pelo jusuíta D. Gonçalo da Silveira, parte de Goa com a inteção de chegar em Monomotapa, na África, e assim converter o reino à fé cristã. Nessa nau em que o jusuíta viaja, ele leva consigo uma belíssima imagem de Nossa Senhora, que depois fica-lhe faltando um dos pés. A viagem é repleta de percalços como tempestades, ameaças de motins, muitas mortes, pecados e conspirações.

A trama do romance é muito movimentada e isso torna a leitura muito ágil. É interessante perceber que fatos ocorridos no século XVI exercerão influência direta na atualidade. Todo o romance apresenta alguns elementos do sebastianismo, como a ideia da volta de um mártir (ou messias). O mártir nesse caso não seria apenas um, mas sim todo um povoado, toda Vila Longe, a terra natal de Mwadia e de seus familiares. As pessoas aqui não esperam mais nada, não esperam que mais nada aconteça, estão presas na decrepitude do tempo. É com um tom lírico que Mia Couto descreve todo esse processo de aniquilamento matafísico do povoado de Vila Longe, à maneira de García Marquez em Cem anos de solidão .

Vila Longe serve aqui como um microcosmo de toda África, com todos seus encantos e com todas suas misérias. Aos poucos cada personagem vai sumindo, vai se desvanecendo. Mia Couto tece, através da metáfora, através de símbolos, um perfil da África e de seus habitantes como um todo, com todo seu misticismo, inocência, mazelas e belezas.

sábado, 6 de outubro de 2012

A força do silêncio de Mariel Reis



O ato de escrever é solitário e silencioso. O ato da leitura também exige silêncio. A complexa prática da leitura exige um silêncio externo, mas internamente, quanto mais inquietos permanecermos durante a leitura, melhor. Esse silêncio metafísico oprime o verdadeiro leitor, mas não é uma má opressão, antes uma opressão que leva à reflexão, e é isso que importa. Portanto, não basta haver silêncio pura e simplesmente, mas um silêncio rangente e intimista. Elementos que não se aplicam apenas à literatura, mas (principalmente) à vida.

Mariel Reis, escritor carioca que para os leitores deste blog dispensa apresentações, acaba de publicar A arte de afinar o silêncio (2012, Ponteio. 114 p.), uma coletânea de contos. Mariel é um sobrevivente, pois insiste na produção de um gênero que não é muito popular no Brasil. Mariel, desde seu primeiro livro, Linha de recuo e outras estórias, passeia sutilmente pelos meandros da narrativa curta, captando sua essência como poucos. Qualidade típica dos grandes mestres.

A estrutura de A arte de afinar o silêncio simula a programação de um dia da televisão. Mariel divide o livro em pequenas seções, como “Bom dia”, “Programa feminino”, “Telejornal – 1ª edição”, “O povo quer saber”, “Novela das seis”, “Telejornal – 2ª edição”, “Entrevistas”, “Telejornal – 3ª edição” e encerra com “Fora do ar”. Não há um número padrão de contos por capítulo e nem temática fixa. Desde Jonh Fante trabalha no esquimó (2008, Calibán. 76 p.) que Mariel explora a chamada prosa urbana, seca ao estilo de Hemingway, sombria ao estilo de Dalton Trevisan, povoada por espectros decadentes, párias, viciados, prostitutas, assassinos, policiais corruptos, porém, com forte carga lírica.

Mariel inicia o livro com o conto “O poste”, uma espécie de fluxo de consciência de um anônimo perdido na cidade. O conto, que é composto por pouco mais de dez linhas, é uma reflexão sobre o cotidiano urbano. Pode ser o Rio de Janeiro de Mariel Reis, pode ser a minha Curitiba ou qualquer outra metrópole do mundo. Em muitos contos Mariel explora as referências geográficas do Rio de Janeiro, mas seu texto é universal, sem amarras.

Um ponto alto do livro é a série de microcontos “O labirinto”. São diversos flashes da crua realidade urbana vistos por espectadores anônimos que ao longo da narrativa vão sofrendo uma espécie de animalização, vão se transformado em bestas que vivem à beira do caos, por instinto.

 
A mulher acena para um homem na banca de jornal.

Ela pede que a siga. Descem algumas ruas.

Ele a perde por alguns segundos.

Ela indica um bar, esvoaçando para os fundos da espelunca.

Banheiros.

Feminino e masculino.

Empurra uma das portas. A fetidez de goelas escancaradas.

Ela colada à parede. Arregaça a parte inferior do vestido.

- Você vai me comer – ela ordena.

Um clarão, depois outro.

Sangue e merda.

Ela retoca o batom. (p.63)

 
Esse fragmento mostra bem essa verve literária voltada ao absurdo da vida em uma situação limite. Há vozes que permeiam os pequenos textos de “O labirinto” que não são ouvidas, o leitor deve procurá-las nas entrelinhas, nas sugestões de atitudes mínimas de afeto. São personagens vigiados e cercados por espectros que não veem. Mas estão sempre à espreita. Há sempre a iminência de algum ato violento: um assalto, um assassinato, um estupro.

Os personagens de Mariel são vítimas de perdas e ausências irredutíveis, e desta forma sofrem um emparedamento metafísico. É a imagem do sujeito contemporâneo sem perspectivas, pura massa de manobra.

O homem-bomba, quando sai vivo, depois do turno de trabalho, deve se reunir com outros homens iguais a ele, tristes como ele, para sonhar com o mundo em cinzas. (p.65)

“O labirinto” é um mosaico do ambiente urbano atual composto por sociopatas, e estes sociopatas procuram justificar seus atos de barbárie. Não há protagonistas, seus próprios atos violentos assumem o vácuo deixado por eles. Assim como os espaços descritos nas micronarrativas de “O labirinto” não são nomeados, os personagens (tipos) também não o são. Agem por impulso, nunca pensam, querem e buscam o imediato em forma de prazer ou benefício próprio. Nota-se um movimento crescente de parágrafo para parágrafo, o que mostra domínio total da técnica narrativa.

Mariel deixou o melhor para o fim. Depois de ler a bela sequência de “O labirinto”, confesso que não esperava encontrar algo tão bom ou do mesmo nível, mas Mariel deixou lá, quase escondido nas últimas páginas,  “Um conto sobre a inveja”. Em meio a um universo composto por brutalidade, violência e barbárie, Mariel compõe, sem sombra de dúvida, seu melhor texto escrito em toda sua carreira de contista.

Mariel narra as agruras de Lima Barreto, que vai encontrar-se com seu “rival”, ninguém menos do que Machado de Assis. No caminho para a casa do bruxo, Lima Barreto conhece Bento Santiago, o próprio Bentinho de Dom Casmurro, e Bento, agora advogado, lamenta-se por ter virado matéria para alguns escritores galhofeiros. E a ação transcorre toda nesse ritmo de lamentos e também, como se descobre no final, de delírio.

Em conversa recente com Mariel, não pude deixar de comparar “Um conto sobre inveja” com Meia-noite em Paris (2011) de Woody Allen. E é essa questão que torna A arte de afinar o silêncio o melhor livro de contos de um escritor brasileiro contemporâneo que li desde Desgracida (2010) de Dalton Trevisan. Mariel Reis transita do trágico, obsceno, grotesco e bárbaro para o lírico, poético e sublime com uma precisão que não vejo em outros escritores atuais. Afinadíssimo esse silêncio! 
 

ESTRELA DIFUSA

  O tempo é o fator que talvez possa explicar melhor algumas coisas que simplesmente não escolhemos; ou melhor, insistimos em dizer que não ...