quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

42 anos sem Lennon




Quando nasci (1983), John Lennon já havia morrido há quase três anos, e a onipresença e onipotência dos Beatles me acompanham desde muito cedo. Primeiro, por vir de uma família musical, com pai, tio, irmãos e primos músicos. Naturalmente, todos beatlemaníacos. Segundo, pela atmosfera que envolve os fab four, sempre repleta de mistério, teorias da conspiração, e todo um universo que vai muito além da música, dos discos, das personalidades individuais de cada músico.

A relevância dos Beatles pra mim sempre esteve ligada à figura de Lennon. Embora meu beatle preferido sempre tenha sido George, sempre foi através de John que identificava assinaturas muito peculiares do quarteto. Sempre associei a sonoridade dos Beatles (em suas diversas fases) à rebeldia de John, à sua porralouquice, ao seu senso crítico, à voz anasalada, à ironia fina e sempre contestadora e sua eterna luta contra a caretice, contra o bom-mocismo e à idolatria pop de sua própria imagem, tanto que se torna uma figura reclusa em meados dos anos 70 até o fatídico dezembro de 1980. 

Pouquíssimos artistas pop encarnaram tão bem grandes elementos paradoxais, sendo isso tão comum em artistas geniais, como o fez John. Lennon cantou suas paixões, neuras, crises existenciais, viagens de ácido e bad trips em canções geniais como I am the walrus, Dear Prudence e a genial A day in the life. Dificílimo elencar um paideuma com canções dos Beatles. 

Nesse dia em que se completam 42 anos do assassinato brutal do possivelmente maior ícone pop do século XX, me pego pensando que em fevereiro de 2023 completarei 40 anos de idade, a idade que Lennon tinha quando morreu. Estranho demais ver a passagem do tempo como se risse de nosso desespero. 

Às vésperas de completar 40 anos, penso que não cheguei a dois terços de realizações de John quando tinha minha idade. Enfim, digno de mestre no melhor sentido da palavra, o legado de Lennon, depois de 42 anos de sua morte e de 52 anos do fim dos Beatles, só aumenta. Como cantou John (na possivelmente mais linda canção de todos os tempos), "I read the news today, oh boy! About a lucky man who made the grade"...

terça-feira, 30 de agosto de 2022

A NOVA PROSA MINEIRA

 



Não é de hoje que Minas Gerais é um dos principais celeiros literários do Brasil. Forçando a memória rapidamente, de cara já  pensamos em nomes como Drummond, Guimarães Rosa, Murilo Mendes, Paulo Mendes Campos, Darcy Ribeiro, Conceição Evaristo, Fernando Sabino, Rubem Fonseca, e a lista continua.

Recentemente tive o privilégio de conhecer dois autores mineiros que estão em plena atividade. Um mais experiente, já com três livros publicados; outra é estreante e, já em seu livro de estreia, mostra a que veio e promete um projeto literário promissor.

Comecemos por Rebeca Maia, autora de Cerveja Amarga (2022, Editora Ipêamarelo). Rebeca é uma jovem escritora de Belo Horizonte que traz em seu livro encontros e desencontros, vozes que se calam, relações desfeitas e rebeldia. As personagens de Cerveja Amarga são mulheres fortes sempre em procura de algo, independência, carreira profissional, destruição do patriarcado; é um dos acertos da autora a escolha pela primeira pessoa em quase todos os 11 contos do livro. Os textos funcionam como flashes intimistas de mulheres que não se curvam a estereótipos arcaicos e tampouco a vozes patriarcais opressoras. Destaque para os contos Sinestesia, Cerveja amarga e Cogito, ergo sum

Mesmo discordando da autora em algumas escolhas sintáticas, como em alguns usos de adjetivos, por exemplo, Rebeca Maia mostra que é uma prosadora nata. Já ansioso pelo segundo livro. 

O segundo autor é José Vecchi de Carvalho, autor do forte e impactante Cada gota de silêncio (2021, Editora Ipêamarelo). Vecchi nasceu em Cataguases. Publicou os livros Duas Cruzes (2018, Kazuá) e Contradança (2020, Estrondo), ambos de contos.

No seu terceiro volume de contos, Vecchi nos apresenta um universo, diferente de Rebeca Maia, que é de dentro para dentro, de dentro para fora, porém sem tornar-se panfletário ou algo parecido. 

Nos 19 contos que compõem o livro, por mais que sejam independentes entre si, podemos vislumbrar uma espécie de fio condutor. Não que os textos possam ser lidos como continuação um do outro, mas se aproximam naquilo que o autor (acertadamente) deixa nas entrelinhas para ser degustado pela leitora e pelo leitor atentos. 

Há de se levar em consideração em Cada gota de silêncio, além das personagens marginalizadas socialmente, uma personagem inerente aos textos e que aparece com frequência: os diversos tipos de silêncio. Essa presença quase que metafísica do silêncio na prosa urbana de Vecchi carrega conceitos muitas vezes díspares, como o vizinho que vê um conhecido de infância se afundar no crack, um pai que nunca retorna pra casa, um casal em crise que vive à beira de um abismo silencioso e, só por isso, não o transpõe. 

Enfim, são muitos os silêncios com os quais nos deparamos no livro, mas talvez o mais forte seja o que acontece no conto homônimo, em que uma personagem jovem e atormentada fala muito sem proferir uma palavra sequer. O fim trágico nos aponta isso, o que não é spoiler, mas uma espécie de prenúncio de tragédia.

Autores que valem a pena serem descobertos e degustados sem parcimônia, José Vecchi de Carvalho e Rebeca Maia já fazem parte da forte e profícua galeria de contistas brasileiros.


Serviço

Cada gota de silêncio (contos, 2021. Ipêamarelo)

José Vecchi de Carvalho


Cerveja Amarga (contos, 2022, Ipêamarelo)

Rebeca Maia    

 

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

VESTE-ME EM TEU LABIRINTO, DE DANIEL OSIECKI*

 



Acabo de ler Veste-me em teu labirinto (Editora Caravana), esta bela estreia no romance de Daniel Osiecki, que já publicou vários livros de poesia e contos. Nele, o narrador Daniel, escritor e publicitário, nos conta que recebeu o diário de um amigo já falecido, chamado Caetano. Nesses diários, lemos as reminiscências de um homem que se assumiu gay tardiamente, após um casamento fracassado e dois filhos que não aceitam a sua "escolha”. 


Há uma forte carga emocional nas palavras de Caetano, pelos traumas sofridos, a dúvida, a rejeição da família e a solidão, além de passagens explícitas sobre suas experiências sexuais. Entretanto, Daniel, o escritor-narrador, nos informa que Caetano tinha o desejo de transformar a sua história em um romance, e que ele fará “correções” no diário, em nome da clareza e da fluidez. 

A partir daí, a narrativa se torna extremamente engenhosa, pois não sabemos até que ponto o que estamos lendo são as lembranças de Caetano ou a ficção do narrador Daniel – como na passagem em que a personagem Alice lhe conta sobre uma experiência que teve com Caetano, que logo em seguida aparece, ipsis literis, em seu diário, ou como quando Caetano e Daniel nos contam versões conflitantes sobre o mesmo fato.

Daniel Osiecki maneja com bastante segurança esse jogo de espelhos, numa prosa fluida, mesclando realidade e ficção, em duas camadas sobrepostas, onde ele cria o personagem-narrador Daniel, que por sua vez recria o personagem Caetano. Mas o que importa, ao final, além da sofisticação na narrativa, é a empatia e a compaixão do autor e seu narrador, numa comovente ode à amizade, ao amor e à compreensão, neste mundo e nesta época tão carentes de afetos.

*Marcelo Nunes nasceu em São Paulo e é escritor, tradutor e artista plástico. É autor do romance Nirvana (Kotter Editorial, 2021).

Serviço:

Lançamento de Veste-me em teu labirinto (Editora Caravana)
13 de agosto - 14h
Livraria Vertov - R. Visc. do Rio Branco, 835 - 2º andar - Mercês, Curitiba
R$ 45


RÉQUIEM PARA DÓRIS

 

Cachorra Baleia Espreguiçando - Marco de Sertânia



Não são raras as aparições de cães na literatura. Uma das representações mais tocantes é o incrível Argos, o cão de Ulisses, da Odisseia de Homero, que aguarda seu dono por 20 anos. Ulisses, ao voltar da guerra de Troia, ao chegar em casa encontra seu cão abandonado em um monte de estrume de vaca. O cão, que o esperou durante toda sua ausência, o reconhece quando seu dono se aproxima e, como tendo cumprido sua missão, mexe as orelhas, abana sua cauda e morre.
Outros tantos cães na literatura são icônicos, como o machadiano Quincas, que herda o nome e os olhos do dono e depois de sua morte continua com alguns trejeitos do dono morto, e Baleia, a doce e forte cadelinha de Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
Baleia está presente em todo o périplo pelo qual a família de Fabiano passa,  e assume papel de muita relevância na narrativa. Tem, inclusive, voz em um capítulo em que sonha que anda livremente em um paraíso de preás. Cena lírica e tocante que é uma espécie de válvula de escape na aridez do romance. Lírica também como foi sua morte, mas isso deixo para o leitor e para a leitora que ainda não se embrenharam pela obra-prima de Graciliano.
Poderia citar ainda outros tantos exemplos, como a Kashtanka, de Tchekhov, ou o Olho de Boi, de Dickens (Oliver Twist) e segue a lista, mas outro cão que foi importante demais foi Dóris, que fez parte de minha vida de agosto de 2008 (com pouco mais de um mês de idade) até ontem, quando morreu aos 14 anos.
Dóris recebeu seu nome (ideia de meu irmão) graças ao icônico e lisérgico ônibus que transporta a banda fictícia Stillwater, no filme Quase Famosos (2000). Quando a trouxemos para presentear minha mãe por seu aniversário, Dóris cabia em uma sacola minúscula, e exigia cuidados extremos na alimentação e todo o resto, pois era muito nova e frágil. 
Curiosamente quando a trouxemos, eu lia naquela tarde o romance de Saramago, A viagem do elefante, que também tem sua ação girando em torno de um animal. Dóris me fez companhia em tantas noites de leitura, estudos e escrita.
A questão com todas essas personagens literárias e Dóris é pra mostrar o quão poético pode ser a relação do humano com um animal, nesse caso com um cão. Sempre quando retornava à casa de meus pais, Dóris, tal qual Argos aguardando Ulisses, vinha me receber com afeto e efusão; tal qual Argos abanava a cauda e como Baleia gania e chorava alegre por me ver.
Dóris cumpriu seu papel com maestria e fidelidade inabaláveis. Fará falta.   

quinta-feira, 7 de julho de 2022

VERTIGEM GERAL, de Geise Pereira

 



Os primeiros nomes mais relevantes na literatura que povoaram meu imaginário de jovem leitor foram Gertrude Stein e Clarice Lispector. Muito cedo fiquei vidrado na atmosfera daquela mulher que concentrava ao seu redor toda uma geração de artistas que estavam em busca de sua linguagem própria e de alguém que lhes proporcionasse espaço e meios. 

Stein assumiu o papel de agitadora cultural, além do de escritora, inserindo boa parte dos escritores da chamada Geração Perdida, como Hemingway, Fitzerald e artistas diversos como Picasso, Modigliani e outros, no tumultuado circuito artístico da Paris do início dos anos 20. Isso para mostrar a relevância da artista que venceu muitas barreiras em um contexto não muito favorável às questões feministas e LGBTQIA+ (quase um século antes de existir a terminologia), sendo Stein uma mulher lésbica vivendo com sua companheira, Alice B. Toklas, em um país que não era o seu.

Clarice Lispector foi a segunda escritora de grande impacto, sobretudo depois de me deparar com as agruras e peripécias de Macabéa, no genial A hora da estrela. A potência da prosa de Clarice  é impressionante desde Perto do coração selvagem, um romance juvenil, mas que já anunciava uma nova voz na literatura brasileira. Há de se levar em consideração também o contexto no qual a escritora estava inserida, extremamente conservador, misógino e sexista, mostrando uma escritora sempre atenta ao seu contexto e situação do Brasil.

Pensando em grandes escritoras, me deparo recentemente com o livro de estreia (o que tem acontecido com certa frequência) da poeta paulista Geise Pereira, Vertigem Geral, lançado em 2021 pela Editora Ipêamarelo. Geise participou de quatro antologias antes de publicar seu primeiro trabalho solo.

Vertigem Geral é um mergulho em nosso terrível tempo presente. As diversas vozes que permeiam o volume convergem para um fim comum: tomar posição diante dos muitos tipos de autoritarismos que enfrentamos diariamente. Há a mulher reprimida não apenas por um parceiro violento e abusivo, mas por toda sociedade (podemos citar como exemplo o grito de igualdade e deboche no poema Bela, recatada e do lar), ou Brasil 2018 (poema que abre o livro), ou o poema visual sem título que brinca com a palavra Luta, bem no meio do volume e os exemplos continuam. Inclusive a questão visual é muito relevante no livro todo. Um dos pontos altos é o ótimo Presente no passado, com  seus versos quebrados e literalmente saltando na página, remetendo ao célebre Un Coup de Dés, de Mallarmé.

O livro como um todo, fora seu forte caráter político, traz reflexões sobre o próprio corpo, como uma espécie de poética sinestésica do toque, do cheiro, do visual. Na primeira orelha do livro há mais um flerte visual que, em alto-relevo, prenuncia: "POESIA É TOQUE". Ou seja, Geise não se esgota em uma poesia epidérmica, simplista e panfletária; pelo contrário, sua poética do caos, com toda uma consciência do labor literário como produção de linguagem antes de qualquer coisa, é seu leitmotiv em todo Vertigem Geral

Os pouco mais de cinquenta poemas que compõem o livro já anunciam uma poeta que inicia a caminhada literária com o que há de melhor na literatura: potência de linguagem e originalidade.


Serviço:


Vertigem geral (poesia)

14x21

72 páginas

R$ 35,00

Editora Ipêamarelo

www.editoraipeamarelo.com.br

quinta-feira, 30 de junho de 2022

ALDEIA NOVA: UMA ODISSEIA PELO ALENTEJO


 


Manuel da Fonseca foi um dos principais autores do Neorrealismo português. Sua obra é vasta, girando em torno da poesia, do romance, do conto e da crônica. Mas foi no conto que sua obra teve mais relevância em Portugal e em outros países da Europa, como Espanha e França. Títulos como  Rosa dos Ventos (1940) poesia, Aldeia Nova (1942) contos, O Fogo e as Cinzas (1951) contos, Cerromaior (1943) romance, e Seara de Vento (1958) romance, estão entre suas obras mais conhecidas.


Tendo começado muito jovem na poesia, logo Manuel da Fonseca mostrou-se um grande narrador, legítimo contador de histórias que logo teve seu primeiro livro em prosa, Aldeia Nova, reconhecido como um marco do Neorrealismo em Portugal, deixando, assim, sua produção poética em segundo plano.


O livro Aldeia Nova reúne doze contos, sendo que em muitos deles nota-se uma sequência cronológica e reaproveitamento de personagens. A construção de cada personagem que aparece ao longo do livro é moldada meticulosamente, seguindo, em muitos casos, estereótipos das vilas alentejanas do início dos anos 40. Como por exemplo, no conto O primeiro camarada que ficou no caminho, que narra a história (como não podia ser diferente) trágica da família Parral. Esse conto é o primeiro que mostra o dia a dia desta família de lavradores falidos, e é nesse conto que Rui Parral aparece pela primeira vez. Rui é como se fosse o personagem principal do livro todo, pois ele aparece em vários outros contos posteriores.


A narrativa gira em torno do drama da família Parral, pois além de Rui, seus pais têm outro filho, Carlos, e ao que tudo indica sofre de lepra. A família, para proteger Rui da doença, não deixa que ele se aproxime da casa da família, deixando-o assim aos cuidados dos avós. As cenas que seguem são de extrema dramaticidade e beleza, pois Rui, ao mesmo tempo em que se vê abandonado pela mãe sem saber qual o motivo, é privado da companhia do irmão, seu grande amigo.


Não por acaso que Manuel da Fonseca, nesse conto, descreve os percalços da família Parral tão dramáticos, pois tem a intenção de mostrar a situação precária da rotina da família alentejana. Manuel da Fonseca insere-se na corrente neorrealista, mas sua literatura em momento algum pode ser chamada de panfletária. Antes literariamente engajada, mas não panfletária.


O conto que segue, O ódio das vilas, narra a história de António Vargas, um herdeiro de uma rica família de Cerromaior que larga sua noiva, uma bela moça de família tradicional da cidade para casar-se com Maria Jacinta, filha de um pobre lavrador. A intenção de António Vargas é levar sua nova esposa para sua casa em Cerromaior e mostrar à cidade que seus princípios vão além das convenções sociais e de seu provincianismo. Esse conto mostra claramente a rivalidade que há entre as aldeias do sul de Portugal, principalmente quando há conflito de classes. Manuel da Fonseca deixa transparecer sutilmente preceitos do marxismo, do qual era ferrenho adepto, como muitos autores neorrealistas.


No conto seguinte, Sete-Estrelo, novamente há a presença de Rui Parral. Ainda criança, é abandonado pelos pais, que vão embora em busca de emprego em outras aldeias do Alentejo, e não voltam mais. Rui, abandonado, fica aos cuidados dos avós maternos, e dessa maneira é criado livre pelos campos de Cerromaior. Esse conto está entre os melhores da coletânea, pois mostra o drama da família Parral mais interiormente, seus pensamentos, suas angústias, e é nesse ponto que difere muito dos outros contos, que abordam dramas mais coletivos.


Essa opção pelo drama pessoal repete-se no conto que vem logo a seguir, Névoa. Essa breve narrativa conta a história de Zé Limão, um alcoólatra que vive de esmolas e da caridade alheia. Conforme a narrativa vai se desenvolvendo, uma névoa vai tomando conta da cidade. A névoa aqui é um símbolo para a distância entre as relações humanas, uma metáfora sobre a impossibilidade de comunicação entre as pessoas. E logo que Zé Limão acorda de um porre, encontra-se sozinho, isolado envolto à névoa que se apodera de toda a vila. Dessa maneira segue trôpego por ruelas, paredes frias de pedra e encontra apenas portas fechadas.


Mais uma vez o final do conto é trágico, como toda atmosfera narrativa, característica de Manuel da Fonseca, que mostra nos contos uma benevolência ou condolência muito grande por párias que a sociedade rejeita, por seres marginais e injustamente abandonados pelo sistema, mostrando assim, uma visão rousseouniana impossibilitada, pelos percalços da vida, de ser mudada ou vista com esperança.


Observa-se a mesma temática nos contos Aldeia Nova e Nortada. No conto que dá título ao livro, Zé Cardo, o jovem protagonista de 13 anos, é um trabalhador rural que sonha em conhecer Aldeia Nova, o vilarejo mais próximo de onde mora. As condições de sobrevivência são precárias, o trabalho é braçal e se inicia antes do sol nascer e termina após o sol se pôr. O lugar onde dorme é praticamente ao relento, enfrentando calores extremos e as piores nevascas. Dessa maneira Zé Cardo vai vivendo sua vida, sempre sonhando em conhecer Aldeia Nova.


Cinta Mouro, uma espécie de caixeiro-viajante que sempre ia a Aldeia Nova, contava ao povoado suas histórias de viajante, o que fascinava Zé Cardo e assim nasceu o desejo de conhecer tal povoado. Mas o desejo nunca pode ser realizado, mostrando assim uma frustração que não pode ser mudada. Zé Cardo e suas frustrações nesse conto servem como um símbolo para todos os trabalhadores rurais do Alentejo, e a pequena aldeia de Zé Cardo como um microcosmo para o mundo lá fora.


O conto termina com Cinta Mouro contando uma de suas histórias para seus companheiros, e Zé Cardo, cansado por ter trabalhado o dia todo, adormece sem ouvir seu final. Aqui há uma bela imagem que serve como sinal de esperança, pois Zé Cardo adormece e sonha que entra em Aldeia Nova, como nas histórias que ouvia. Manuel da Fonseca busca com esse final uma espécie de redenção para o alentejano, mas essa redenção, ao mesmo tempo em que é descrita com um forte tom de esperança, também se torna impossível, pois só ocorre através do sonho de seu protagonista.


Em Nortada, o conto que encerra o livro, nota-se mais uma recorrência nos contos do volume, que é a importância do espaço na narrativa. O Neorrealismo tem como característica uma técnica chamada de espaço atmosférico, que é a inserção do espaço como elemento salutar na narrativa. E isso ocorre com frequência nos contos e também nos romances de Manuel da Fonseca.


Em meio a uma atmosfera sombria e noturna, a narrativa de Nortada se desenvolve por quase vinte páginas, e narra a desventura de Rui Parral, agora já crescido e retornando a Cerromaior depois de muito tempo. A caracterização do espaço aqui se desenvolve de maneira a interferir diretamente nos acontecimentos narrados, pois conforme Rui vai se aproximando de seu destino final, o frio, o gelo das montanhas e a escuridão irredutível vão agindo de forma a impedir a viagem de terminar de forma tranquila. Rui viaja como passageiro em uma carroça de um aldeão, que por algum dinheiro se prontificou a levá-lo a Cerromaior.


Quando Rui chega à casa que fora de sua família quando criança, nota-se a degradação física do ambiente, que por sua vez, reflete a degradação também física e moral de Rui. Na escuridão e no frio da casa abandonada, Rui enxerga vultos e espectros que são sinais da desolação, da miséria e do tempo. Manuel da Fonseca constrói, assim, uma das mais belas imagens de todo o livro, indo diretamente ao encontro das tendências neorrealistas, mostrando e denunciando a exploração da sociedade pelo meio rural. Um dos temas mais recorrentes dos escritores neorrealistas.

quarta-feira, 29 de junho de 2022

A EQUILIBRISTA SEM DOM, de Mila Gomes

 





Em tempos sombrios e difíceis como os últimos anos (crise em 2013, golpe em 2016, eleição do inominável em 2018, pandemia), é muito bom quando nos deparamos com um olhar atento, porém sensível, de nosso cotidiano.

Mila Gomes, poeta carioca, em seu livro de estreia, A equilibrista sem dom (Editora Ipêamarelo, 2021) experimenta assumidamente um tom confessional. A poeta transita entre reflexões sobre idas e vindas amorosas, amores e paixões platônicas e sobre a consciência do corpo como elemento fulcral desse eu-lírico que se esgueira como o gauche drummondiano (ou como o flâneur baudeleireano?) por versos diretos, nada herméticos, mas que em momento algum soam simplistas.

Mila Gomes parece apresentar à leitora e ao leitor um poema único do começo ao fim. Sua dicção bastante peculiar, com versos livres, mas com certos jogos de construção de imagens que nos remetem à "santíssima trindade" retórica poundiana, explora muito bem os elementos sensoriais da fanopeia. 

João Apolinário e João Ricardo, compositores do clássico do Secos & Molhados, Amor, se referem metaforicamente à leveza da pluma (em oposição aos terríveis anos de chumbo sob o tacão do coturno dos milicos), o que se aproxima muito do que Mila Gomes faz em A equilibrista sem dom. Assim como nos terríveis anos de ditadura, vivemos momentos de violência, de discurso nacionalista e anti-humanitário, mas ainda assim é preciso de leveza e de sofisticação, que são elementos em que a poeta acerta em cheio.

Serviço:

A equilibrista sem dom
Poesia
10x18
59 páginas
Editora Ipêamarelo 

   

terça-feira, 21 de junho de 2022

OS CUS DE JUDAS E O PROGRESSO DA LEMBRANÇA*




O estilo de António Lobo Antunes em seus romances iniciais é bastante diferente do que fez posteriormente, principalmente nos romances escritos a partir dos anos 90. Todo o seu trabalho meticuloso com a memória permanece, mas é na linguagem que se diferenciam. Pode-se dizer que Lobo Antunes evoluiu esteticamente de obra para obra ao longo das décadas, mas a memória continuou sendo sua grande obsessão, seu leitmotiv.

Seus romances iniciais, principalmente os dois primeiros, se diferenciam muito pouco temática e esteticamente entre si. Memória de Elefante, escrito e publicado poucos meses antes de Os cus de Judas, em 1979, narra a história de um médico psiquiatra que retorna da guerra colonial em Angola sofrendo de graves crises existenciais e traumas complexos com os quais não consegue lidar. Os cus de Judas também narra a história de um médico psiquiatra que retorna da guerra colonial em Angola, que também sofre de crises existenciais graves das quais não pode se desvencilhar, mas já há, no segundo livro, um cuidado maior com a linguagem, a mudança de foco narrativo, os elementos exotópicos bakhtinianos de como ver o outro e a si próprio e, claro, um apuro maior com a questão do trabalho da memória do protagonista. Se em Memória de elefante há a presença embrionária da reprodução da memória histórica, em Os cus de Judas percebem-se elementos bastante próximos das teorizações do lembrar, tanto da memória histórica (porém não é o que predomina) quanto da memória espontânea e da memória aprendida.

O protagonista de Os cus de Judas passa uma noite inteira em um bar relatando suas lembranças mais diversas para uma estranha. Seu relato começa com uma lembrança da infância, muito mais distante, porém mais clara, mais viva, do que seus relatos da guerra colonial. É importante aqui considerar esses dois polos equidistantes: infância até a fase adulta (antes de partir para África) = memória espontânea; fase adulta (vai do período durante a guerra até seu retorno a Portugal) = memória aprendida. E claro, há o momento em que se lembra, ou seja, em que o trabalho da memória se concretiza no tempo presente, no qual todo funcionamento mnemônico é possível. O início de seu relato tem o objetivo de se referir a algo muito mais distante, mas menos doloroso e, consequentemente, mais fácil de ser concretizado, ou seja, de ser transformado em linguagem.


Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico era do rinque de patinação sob as árvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento em elipses vagarosas sem mover um músculo sequer, rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas, que, se falassem, possuíam seguramente vozes tão de gaze como as que nos aeroportos anunciam a partida dos aviões, sílabas de algodão que se dissolvem nos ouvidos à maneira de fins de rebuçado na concha da língua. Não sei se lhe parece idiota o que vou dizer mas aos domingos de manhã, quando nós lá íamos com meu pai, os bichos eram mais bichos, a solidão de esparguete da girafa assemelhava-se à de um Gulliver triste, e das lápides do cemitério dos cães subiam de tempos a tempos latidos aflitos de caniche (...) (ANTUNES, 2003, p. 7).


Enquanto sua narrativa vai avançando, as reminiscências de um passado não tão lírico nem tão facilmente recordado vão assumindo proporções maiores, porém sem organização cronológica. O único elemento cronológico do romance é o tempo presente, ou seja, é a noite em que o protagonista narra suas desventuras para uma desconhecida em uma bar. Vale ressaltar que conforme o tempo cronológico avança, o psicológico se movimenta livremente na consciência do protagonista, e é nesse movimento que não pode ser controlado, em que pode ser observada a outra memória descrita por Bergson, a memória aprendida, ou seja, ela é involuntária na maior parte do tempo, ainda mais quando situações de alarme, traumáticas, são lembradas. Que é o que ocorre com as lembranças do protagonista de seu período em Angola. Bergson afirma que "A questão é saber se a lembrança da dor era verdadeiramente dor na origem” (BERGSON, 1996, p.33), ou seja, as lembranças do protagonista de seu tempo como oficial do exército português na guerra colonial de fato foram dolorosas no momento em que ocorreram? Podemos afirmar com segurança que aquilo que é narrado pelo protagonista em uma noite de bebedeira foi tão dramático quanto parece ser durante seu processo de rememoração, pois seu sofrimento já começa antes de embarcar para África, com seu desencanto com o meio pequeno-burguês que o cerca e oprime e do qual faz parte; seu desencanto com a sociedade portuguesa como um todo, reacionária e retrógrada que não são compatíveis com seus anseios e desejos, tanto presentes quanto futuros.

É bastante curioso pensar em Salazar como um espectro onisciente que de fato moldará o pensamento pequeno-burguês de toda uma geração durante a guerra colonial. Claro que um dos motivos das lembranças do protagonista em relação à guerra serem tão profundas e doloridas, se deve ao fato de o protagonista ter lutado do lado errado, ou seja, ao lado do opressor. Em todo seu relato durante a noite, várias críticas são dirigidas a Portugal e à ditadura do Estado Novo como um todo, mas não é suficiente, por isso mesmo que sua dor era de fato sentida no momento do choque, do trauma.

Como vimos, o relato do protagonista pelo fato de não seguir uma estrutura cronológica, acontecimentos banais da infância ou da fase adulta no período da universidade, por exemplo, se misturam com os relatos da guerra, com cenas de mutilações, torturas e operações na selva de Angola. Bergson diz que a memória induzida, ou seja, aquela gama de lembranças provocadas propositalmente por quem lembra, pode seguir caminhos diversos, como um interesse, de fato, em relatar os acontecimentos passados por necessidade prática (talvez a escrita de uma autobiografia ou de algum relato sobre a guerra).

Levando em consideração as teorizações de Bakhtin sobre autor-pessoaautor-personagem, pois não se deve cair no erro de afirmar categoricamente, como vimos, que o relato do protagonista anônimo, que é médico psiquiatra que serviu no exército português durante a guerra colonial em Angola (assim como António Lobo Antunes) não é autobiografia. Por mais que Lobo Antunes se utilize de elementos autobiográficos e da metalinguagem, seu protagonista é outra entidade que não a sua própria, ou seja, faz parte do universo literário, ficcional que, mesmo tendo elementos correspondentes naquilo que se pode chamar de real, não faz parte dele. Afirma Bakhtin:


A própria linguagem literária – falada e escrita -, já sendo única não só por seus traços linguísticos abstratos, mas também pelas formas de assimilação desses elementos abstratos, é estratificada e heterodiscursiva em seu aspecto semântico-material concreto e expressivo (BAKHTIN, 2015, p. 63).


Philippe Lejeune, importante teórico da autobiografia, afirma que esse termo pode ser mal interpretado ou até mesmo ser ambíguo. Há de se levar em consideração a etimologia e também certos neologismos.


A invenção de uma nova palavra corresponde à tomada de consciência pela qual a palavra existente ("memórias") não é mais satisfatória. A palavra corresponde a um fenômeno radicalmente novo na história da civilização [...]: o costume de contar e publicar a história de sua própria personalidade. Como o diário íntimo, que aparece na mesma época, a autobiografia é um dos sinais da transformação da noção de pessoa e é intimamente ligado ao início do começo da civilização industrial e à chegada da burguesia ao poder (LEJEUNE, 1971, p.10).


É evidente que os elementos heterodiscursivos são levados em consideração em uma obra híbrida e difícil de ser classificada como a de Lobo Antunes, e é exatamente pelo fato de ser levado em consideração que podemos pensar que em sua própria existência histórica a linguagem é heterodiscursiva. Portanto, as armadilhas formais presentes em uma obra como Os cus de Judas e, também, Memória de elefante, podem ser atribuídas às intenções do autor, em alguns casos, e em outros ao próprio acaso.

As armadilhas deixadas por Lobo Antunes durante todo o livro têm o objetivo de deixar o leitor ainda mais à sombra, sem lhe entregar nada de graça. Os elementos reconhecidamente autobiográficos servem exatamente para isso, para lançar escuridão, nunca iluminar. Em outro fragmento do romance, quando o protagonista relata à mulher anônima do bar sua rotina ao chegar em casa todas as noites, pode-se notar certa alteração na precisão de seus relatos, ou seja, a memória induzida vai sendo substituída pela memória aprendida.


Cá estamos. Não. Não bebi demais mas engano-me sempre na chave, talvez por dificuldade em aceitar que este prédio seja o meu e aquela varanda lá em cima, às escuras, o andar onde moro. Sinto-me, sabe como é, como os cães que farejam intrigados o odor da própria urina na árvore que acabaram de deixar, e acontece-me permanecer aqui alguns minutos, surpreendido e incrédulo, entre as caixas de correio e o elevador, procurando em vão um sinal meu, uma pegada, um cheiro, uma peça de roupa, um objecto, na atmosfera vazia do vestíbulo, cuja nudez silenciosa e neutra me desarma. Se abro o meu cacifo não encontro nunca uma carta, um prospecto, um simples papel com o meu nome que me prove que existo, que habito, que de certa maneira este lugar me pertence (ANTUNES, 2003, p. 142).


O encontrar-se consigo próprio ou a tentativa (necessidade?) de encontrar-se consigo próprio é uma situação dramática, uma situação de alarme. Principalmente porque o protagonista, ao retornar da guerra em Angola, deixou de existir. O psiquiatra, quando retorna, perde a família e com isso a convivência diária com as filhas, o que acarreta uma série de outros conflitos pessoais e profissionais. Esse turbilhão de acontecimentos não esperados são fundamentais para o protagonista substituir, sem perceber, pois é a memória aprendida que age, o presente real por um passado idealizado.

Como boa parte de seu relato é formado por um discurso obscuro e brumoso, muito por causa da mudança progressiva que o protagonista vai sofrendo por decorrência do álcool, as reminiscências e lembranças, em alguns momentos, são substituídas por delírios.


(...) continuo a pensar-me sozinho na noite destas praças, destas melancólicas avenidas sem grandeza, destas transversais secundárias como afluentes, arrastando consigo capelistas suburbanas e cabeleireiros decrépitos, Salão Nelinha, Salão Pereira, Salão Pérola do Faial, com penteados de revistas de modas colados ao vidro das janelas. Em casa, a alcatifa bebe o som dos meus passos reduzindo-me ao eco tênue de uma sombra, e tenho a impressão, ao barbear-me, que quando a lâmina me retirar das bochechas as suíças de Pai-Natal mentoladas de espuma, apenas ficarão de mim as órbitas a boiarem, suspensas, no espelho, indagando ansiosamente pelo corpo que perderam (ANTUNES, 2003, p. 134).


O tom delirante assumido por Lobo Antunes em vários momentos de Os cus de Judas, como se o protagonista vivesse em um pesadelo do qual não consegue acordar e é atormentado por lembranças o tempo todo, passa a ser o que o guia em seus solilóquios intermináveis. Há de se levar em consideração que ele narra sua história a alguém, mas a mulher que o ouve e no final vai com ele para seu apartamento, em momento algum ganha voz. O pouco que sabemos sobre a mulher que se resigna a lhe escutar são impressões breves não muito específicas.


Espere aí, vou acompanhá-la à porta. Desculpe o tempo que demoro a levantar-me, e, em vez de má educação, peço-lhe que veja nisso apenas o lamentável resultado do excesso de uísque, da noite sem sono, e da emoção do meu longo relato que está chegando ao fim. Aliás, amanheceu: ouvem-se distintamente as camionetas das obras na rua, um autoclismo qualquer, no andar de cima, anuncia o despertar dos vizinhos. Tudo é real agora: os móveis, as paredes, o nosso cansaço, a cidade demasiado cheia de monumentos e de gente como uma cómoda com muitos bibelots no tampo, que amorosamente odeio. Tudo é real: passo a mão pela cara e a lixa da barba por fazer arrepela-me a pele, a bexiga repleta incha-me a barriga o seu líquido morno, pesada como um feto redondo que geme (ANTUNES, 2003, p. 234).


Esse fragmento deixa bem claro que o tom assumido pelo protagonista é de um desabafo melancólico, no qual há uma espécie de desistência de buscar, ou de tentar buscar, mudanças no presente, já que o trauma é irreparável. Aliado ao trauma da guerra está a dificuldade de suas relações pessoais, principalmente com suas filhas e ex-esposa. Percebe-se a desistência de encontrar sentido para sua vida quando ele assume que o agora é real, ou seja, se só o agora é real, aquilo que faz parte do passado e só é possível chegar a ele através da memória, seja ela qual for, não o é. Tratar os traumas e marcas do passado como acontecimentos abstratos e inventados é parte da negação na qual está inserido intensamente. O que o faz sofrer ainda mais e seu drama ser ainda mais intenso é o fato de que ele percebe sua negação, mas através de uma realidade paralela, superficial, e assim tenta, sem sucesso, superar sua crise.


Tudo é real, sobretudo a agonia, o enjoo do álcool, a dor de cabeça a apertar-me a nuca com o seu alicate tenaz, os gestos lentificados por um torpor de aquário, que me prolonga os braços em dedos de vidro, difíceis como as pinças de uma prótese por afinar. Tudo é real menos a guerra que não existiu nunca: jamais houve colónias, nem fascismo, nem Salazar, nem Tarrafal, nem PIDE, nem revolução, jamais houve, compreende, nada, os calendários deste país imobilizaram-se há tanto tempo que nos esquecemos deles, marços e abris sem significado apodrecem em folhas de papel pelas paredes, com os domingos a vermelho à esquerda numa coluna inútil, Luanda é uma cidade inventada de que me despeço, e, na Mutamba, pessoas inventadas tomam autocarros inventados para locais inventados, onde o MPLA subtilmente insinua comissários políticos inventados (ANTUNES, 2003, p. 237 - 238).


Reparemos que aquilo que o protagonista afirma ser real é anterior ou posterior à guerra em Angola, e o período que esteve no continente africanovinte e sete meses, faz parte de uma sombra, um pesadelo difícil de acordar. Os quase três anos que o médico passou em Angola são sua maior fonte de sofrimento que, constantemente, ajudam a anular seu presente como algo promissor tornando seu futuro bastante incerto, envolto em uma névoa de dúvida, negação e sombras. Na tentativa de superar seus traumas, mesmo não admitindo em seu relato, o médico busca através dos malabarismos mnemônicos que tece, principalmente quando admite estar escrevendo o que narra, tornar a fonte (ou as fontes) de seu sofrimento menos abstrata através de um conceito abstrato, que é a memória.


*Texto adaptado da dissertação de mestrado O pesadelo pós-colonial: identidade e memória na narrativa de António Lobo Antunes, de Daniel Osiecki, defendida em 2018.

terça-feira, 14 de junho de 2022

ESSA CURITIBA EU VIAJO

 


Casa de Dalton Trevisan. Curitiba.
Foto: Diana Nagorski


Desde os anos quarenta que paira uma sombra sobre a cidade de Curitiba. Lá do alto da Rua Ubaldino do Amaral, esquina com a Amintas de Barros, no Alto da XV, um vampiro que não aparece durante o dia e persegue inocentes desavisados durante a noite, profetiza: viverão sob minha sombra, pobres mortais! 

A maldição segue viva até hoje. Hoje, dia 14 de junho de 2022, dia em que Dalton Trevisan (lembra uma espécie de corruptela de Transilvânia!) completa 97 anos de idade, mais de quarenta livros publicados em mais de meio século de literatura, ainda o saudamos. 

Que privilégio o nosso de termos o maior escritor brasileiro vivo. É particularmente especial Dalton ser prata da casa, sobretudo por Curitiba ter uma classe média extremamente cafona, deslumbrada, provinciana com laivos de moderna, mas não consegue ser nada além de kitsch e conservadora. Ok, sei que são adjetivos demais, mas é difícil ser curitibano e não se apegar a algumas dessas descrições.

Dalton, do alto de seu quase centenário, viu muita coisa, conheceu muita gente e, falem bem ou mal, é nossa maior referência literária. Ponto. Só um escritor avant la lettre como ele, em meados da década de 40, em uma província na periferia do Brasil, teria capacidade, competência e coragem de criar um periódico como o Joaquim. Lembremos que Curitiba ainda era bastante apegada a uma espécie de simbolismo tardio, sob a batuta (de grandes poetas, diga-se de passagem) de Emiliano Perneta, Dario Vellozo, Antônio Braga, Silveira Neto, Júlio Perneta e outros.

Dalton surge como um furacão, já rompendo com seus antecessores e, como não podia ser diferente, consigo próprio, renegando suas primeiras obras. Emiliano Perneta, um dos alvos preferidos do vampiro, é chamado de "poeta medíocre", na edição de Junho de 1946 da Joaquim. Escreve Dalton:

"Emiliano Perneta foi uma vítima da província, em vida e na morte. Em vida, a província não permitiu que ele fosse o grande poeta que podia ser, e, na morte, o cultua como sendo o poeta que não foi"...

Fragmento que ilustra bem a pena ferina do vampiro e que foi emulado à exaustão por muitas gerações posteriores. Muitos foram bem sucedidos, outros se tornaram verdadeiros pastiches. Outros, ainda vivem à sombra pesadíssima desse vampiro metafísico, desse ser que há décadas é tão gigante quanto sua própria obra. 

E é assim, vivendo sob sua sombra opressora, que saúdo seus 97 invernos nessa província fria, escura e reacionária. A Curitiba do vampiro sim, essa e não a outra, a de verde e amarelo, com amor, viajo, viajo, viajo...

  

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Poeta curitibano lança primeiro romance


Daniel Osiecki, poeta curitibano,
lança em junho seu primeiro romance,
Veste-me em teu labirinto.


 

  

É bastante comum escritores que começam na narrativa mais curta, ou na poesia, experimentarem aventuras mais extensas no romance. E atualmente também é muito comum autores não se preocuparem tanto com delimitações de gênero. Escreve e pronto!


Daniel Osiecki, poeta e editor curitibano, com o romance Veste-me em teu labirinto se aventura em um terreno que não lhe é tão comum em sua produção literária. A breve narrativa (ou narrativas?), com pouco mais de 100 páginas, conta as aventuras, agruras e peripécias de Caetano, um professor de música que deixa um diário para um amigo escritor publicar. Mas há um porém: não é o próprio Caetano que entrega os seus diários para o amigo escritor, mesmo porque Caetano já morreu, mas alguém que ficou com o manuscrito e aparece no livro muito tempo depois.


O leitor e a leitora perceberão que há muitas camadas no romance; muitas narrativas que se misturam, muitas vozes. Não sabemos se o diário que está sendo mostrado ao leitor pelo editor que organiza o texto de Caetano (mais um labirinto aqui, pois o nome do editor é Daniel) é de fato de Caetano, ou se é recriação de Daniel (o autor-personagem-narrador). 





Conforme os fragmentos vão se sucedendo, as vozes do escritor e do autor do diário se entrelaçam, e um painel intrincado de sobreposições discursivas vão se completando. Romance que flerta com a narrativa epistolar e com a autoficção, Veste-me em teu labirinto prega peças no leitor e provoca reflexões sobre vida, amizade e escrita.



Serviço:

Veste-me em teu labirinto (romance)

Caravana Grupo Editorial

14x21

134 páginas

R$ 54,90



Daniel Mascarenhas Osiecki nasceu em Curitiba, em 1983. Escritor e editor, publicou os livros Abismo (2009), Sob o signo da noite (2016), fellis (2018), Morre como em um vórtice de sombra (2019), Trilogia Amarga (2019), Fora de ordem (2021) e 27 episódios diante do espelho (2021). É editor-chefe da Revista TXT e editor-adjunto na Kotter Editorial. Mestre em Teoria Literária e organizador do sarau-coletivo Vespeiro - vozes literárias.



terça-feira, 17 de maio de 2022

Um conto de Samantha Buglione*


CARMELA 

Foi condenada por homicídio, o tipo grave com intenção de matar. E matar mesmo, nada de morte sem querer ou por descuido ou imprudência. Foi condenada por querer a morte no início, no meio, e no fim. Tipo quem atira em todo mundo num cinema ou o ex-marido que mata a mulher por ciúmes ou a mulher que mata o marido ou a turma que cancela gente na internet. Mas a vontade de matar de Carmela veio do seu ofício: parteira. 

Tinha sessenta e quatro anos quando foi condenada pela morte de um ser humano de três meses antes do parto. Não nascido, portanto. Condenaram a ela e a suposta mãe, uma moça de uns vinte. A pena de Carmela foi maior. Carmela dizia não ter matado gente alguma, que só fez ajudar a moça a menstruar. Porque quem ainda é misturado nas entranhas, seja da mãe ou da terra, não é coisa própria. Então não tem como matar o que não existe. É que nem matar fantasma ou ideia. Para ser pessoa, ou gente, é preciso ser coisa única, chorar, respirar. É preciso ter vontade de nascer e ter a vontade autorizada. E quem autoriza a passagem é o Caronte, que se veste ora de mãe, ora de morte. 

Mas para o júri de não togados, o júri de gente comum, ela era má. Matou inocente que não teve chance de falar. Para Carmela, inocente era a mãe, dona da vontade negada. Nem sangue, nem unha, nem cabelo, nem semente é gente, insistia. Unha e cabelo não virarão outra coisa, mas crescem; semente vira e cresce, mas precisa de tempo certo. Antes do tempo é fantasma, é crença, é espera. 

A velha parteira parecia cansada de repetir o que para ela dispensava discurso. Já cruzou muita terra carregando irmão pequeno no colo de mãe morta, fugiu de senhor que queria deitar à força com ela, procurou trabalho e lugar para dormir. Só fez ajudar menina desterrada. De tanto ver mulher sozinha mandada embora de casa com trouxa de trapo, assombrada que nem bicho surrado, com barriga endurecendo por causa de senhorzinho que deflorou à força, de ver menina morrendo em poça de sangue com pedaço de mamona no meio das pernas porque não conseguia voltar a menstruar, decidiu cuidar quando lhe pedissem. Mas só falava com mulher. Quando homem aparecia, reclamando ajuda para descer menstruação de conhecida, ela mandava embora. Aprendeu que mulher acuada tem que primeiro conseguir partir, para poder decidir. 

Dona Santinha, sua mãe, também parteira, lhe ensinou o ofício. Ia cuidar das mulheres com a mãe. Pra criança vingar, a mãe tem que estar bem cuidada, dizia. E fazia pão e geleia. E trançava os cabelos e fazia meia pros pés da mãe e da criança. Sem pé quente, a criança não aterra. É preciso trazer pro chão. Por fim, ouvia a barriga, tocava o pulso, olhava enviesado o caminhar para ter certeza que estava tudo bem. Foi ela quem ensinou os tempos, os movimentos com as mãos, as ervas, os temperos e ensinou sobre o calor. Ela sabia o que tomar antes e depois do desejo e do parto. Nunca morreu mulher ou criança nas mãos delas. 

Dona Santinha morreu quando Carmela tinha catorze anos. Recém tinha parido com a ajuda da filha e estava no mato buscando erva para aumentar o leite. Ia fazer tintura de algodoeiro. Verão, pisou numa Coral. A morte foi rápida, mas ela sofreu. O pai da criança apareceu para o enterro. Depois foi embora, sem o filho. 

Foram cinquenta anos cuidando de mulheres em lugares que não chegavam nem notícia da cidade, nem médico, nem juiz. Era naqueles descampados que Carmela ajudava as moças a viver. 

Eu não matei gente alguma, nem hoje, nem nunca, declarava Carmela à juíza. Se confessasse, se pedisse perdão, se mostrasse arrependimento ou dissesse ter agido por falta de estudo ou na graça da necessidade, talvez o júri ou a juíza, apiedados, diminuíssem a condenação. Mas Carmela não tinha vergonha ou arrependimento do seu ofício. 

“Minhas mãos, quando sujas de sangue, é sangue de alivio, não de provação. Eu não vim pro mundo para dizer o certo. Eu mesma nunca quis ter filho porque para ter filho é preciso ter espaço e eu não tenho espaço para dar. Agora estou aqui pros doutores me condenarem. No mundo de vocês fantasma vale mais que gente. Ideia mais que as mãos. O credo de vocês não é meu.” 

A pena de Carmela foi de reclusão. Condenada por matar aquilo que estaria por vir, logo ela que cuidava de quem aqui estava. Sua vida como parteira serviu para cimentar a culpa e sua maldade. 

O júri popular, formado de pessoas distintas, teve apenas um voto a inocentando. Nos corredores, o público dizia ser o voto da menina mais nova, de cabelo rosa. Na verdade, foi Helena, uma senhora de uns quarenta anos, esposa de político importante, presidente da comissão pró vida. Ela fez um aborto escondida, pagou bem. 

“Nunca cometi crime algum” — disse Carmela. — “Meu oficio é ajudar criança e menstruação a descer. Eu trouxe ao mundo mais de mil, quando prontas para nascer. Se a criança não chama o parto, não é gente. Criança só é gente quando pode descer. Antes disso, é semente que precisa voltar pra terra ou porque não vinga ou porque a mãe não quer. Essa é a lei do princípio do mundo. E quem autoriza nascer é o Caronte, ora vestido de mãe ora de morte.”

*Samantha Buglione: neta de cabocla, doutora em ciencias humanas, psicanalista e escritora. Autora do livro de contos Carimbos, 2020 (IPE Amarelo), do livro infantil O caracol sem teto, 2021 (IPE Amarelo) e dos livros de poemas Somos Instantes, 2018 e O Amor e suas Vontades, 2018 ambos da Editora Caseira. @samanthabuglione (insta) / buglione.s@gmail.com 

Imagem: Elevação, Wassily Kandinsky

ESTRELA DIFUSA

  O tempo é o fator que talvez possa explicar melhor algumas coisas que simplesmente não escolhemos; ou melhor, insistimos em dizer que não ...