terça-feira, 17 de maio de 2022

Um conto de Samantha Buglione*


CARMELA 

Foi condenada por homicídio, o tipo grave com intenção de matar. E matar mesmo, nada de morte sem querer ou por descuido ou imprudência. Foi condenada por querer a morte no início, no meio, e no fim. Tipo quem atira em todo mundo num cinema ou o ex-marido que mata a mulher por ciúmes ou a mulher que mata o marido ou a turma que cancela gente na internet. Mas a vontade de matar de Carmela veio do seu ofício: parteira. 

Tinha sessenta e quatro anos quando foi condenada pela morte de um ser humano de três meses antes do parto. Não nascido, portanto. Condenaram a ela e a suposta mãe, uma moça de uns vinte. A pena de Carmela foi maior. Carmela dizia não ter matado gente alguma, que só fez ajudar a moça a menstruar. Porque quem ainda é misturado nas entranhas, seja da mãe ou da terra, não é coisa própria. Então não tem como matar o que não existe. É que nem matar fantasma ou ideia. Para ser pessoa, ou gente, é preciso ser coisa única, chorar, respirar. É preciso ter vontade de nascer e ter a vontade autorizada. E quem autoriza a passagem é o Caronte, que se veste ora de mãe, ora de morte. 

Mas para o júri de não togados, o júri de gente comum, ela era má. Matou inocente que não teve chance de falar. Para Carmela, inocente era a mãe, dona da vontade negada. Nem sangue, nem unha, nem cabelo, nem semente é gente, insistia. Unha e cabelo não virarão outra coisa, mas crescem; semente vira e cresce, mas precisa de tempo certo. Antes do tempo é fantasma, é crença, é espera. 

A velha parteira parecia cansada de repetir o que para ela dispensava discurso. Já cruzou muita terra carregando irmão pequeno no colo de mãe morta, fugiu de senhor que queria deitar à força com ela, procurou trabalho e lugar para dormir. Só fez ajudar menina desterrada. De tanto ver mulher sozinha mandada embora de casa com trouxa de trapo, assombrada que nem bicho surrado, com barriga endurecendo por causa de senhorzinho que deflorou à força, de ver menina morrendo em poça de sangue com pedaço de mamona no meio das pernas porque não conseguia voltar a menstruar, decidiu cuidar quando lhe pedissem. Mas só falava com mulher. Quando homem aparecia, reclamando ajuda para descer menstruação de conhecida, ela mandava embora. Aprendeu que mulher acuada tem que primeiro conseguir partir, para poder decidir. 

Dona Santinha, sua mãe, também parteira, lhe ensinou o ofício. Ia cuidar das mulheres com a mãe. Pra criança vingar, a mãe tem que estar bem cuidada, dizia. E fazia pão e geleia. E trançava os cabelos e fazia meia pros pés da mãe e da criança. Sem pé quente, a criança não aterra. É preciso trazer pro chão. Por fim, ouvia a barriga, tocava o pulso, olhava enviesado o caminhar para ter certeza que estava tudo bem. Foi ela quem ensinou os tempos, os movimentos com as mãos, as ervas, os temperos e ensinou sobre o calor. Ela sabia o que tomar antes e depois do desejo e do parto. Nunca morreu mulher ou criança nas mãos delas. 

Dona Santinha morreu quando Carmela tinha catorze anos. Recém tinha parido com a ajuda da filha e estava no mato buscando erva para aumentar o leite. Ia fazer tintura de algodoeiro. Verão, pisou numa Coral. A morte foi rápida, mas ela sofreu. O pai da criança apareceu para o enterro. Depois foi embora, sem o filho. 

Foram cinquenta anos cuidando de mulheres em lugares que não chegavam nem notícia da cidade, nem médico, nem juiz. Era naqueles descampados que Carmela ajudava as moças a viver. 

Eu não matei gente alguma, nem hoje, nem nunca, declarava Carmela à juíza. Se confessasse, se pedisse perdão, se mostrasse arrependimento ou dissesse ter agido por falta de estudo ou na graça da necessidade, talvez o júri ou a juíza, apiedados, diminuíssem a condenação. Mas Carmela não tinha vergonha ou arrependimento do seu ofício. 

“Minhas mãos, quando sujas de sangue, é sangue de alivio, não de provação. Eu não vim pro mundo para dizer o certo. Eu mesma nunca quis ter filho porque para ter filho é preciso ter espaço e eu não tenho espaço para dar. Agora estou aqui pros doutores me condenarem. No mundo de vocês fantasma vale mais que gente. Ideia mais que as mãos. O credo de vocês não é meu.” 

A pena de Carmela foi de reclusão. Condenada por matar aquilo que estaria por vir, logo ela que cuidava de quem aqui estava. Sua vida como parteira serviu para cimentar a culpa e sua maldade. 

O júri popular, formado de pessoas distintas, teve apenas um voto a inocentando. Nos corredores, o público dizia ser o voto da menina mais nova, de cabelo rosa. Na verdade, foi Helena, uma senhora de uns quarenta anos, esposa de político importante, presidente da comissão pró vida. Ela fez um aborto escondida, pagou bem. 

“Nunca cometi crime algum” — disse Carmela. — “Meu oficio é ajudar criança e menstruação a descer. Eu trouxe ao mundo mais de mil, quando prontas para nascer. Se a criança não chama o parto, não é gente. Criança só é gente quando pode descer. Antes disso, é semente que precisa voltar pra terra ou porque não vinga ou porque a mãe não quer. Essa é a lei do princípio do mundo. E quem autoriza nascer é o Caronte, ora vestido de mãe ora de morte.”

*Samantha Buglione: neta de cabocla, doutora em ciencias humanas, psicanalista e escritora. Autora do livro de contos Carimbos, 2020 (IPE Amarelo), do livro infantil O caracol sem teto, 2021 (IPE Amarelo) e dos livros de poemas Somos Instantes, 2018 e O Amor e suas Vontades, 2018 ambos da Editora Caseira. @samanthabuglione (insta) / buglione.s@gmail.com 

Imagem: Elevação, Wassily Kandinsky

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Veste-me em teu labirinto, novo livro de Daniel Osiecki

 


    Veste-me em teu labirinto, primeiro romance do poeta Daniel Osiecki, traz narrativas e personagens distintos. O romance tem como pano de fundo um diário que é entregue a um escritor. Conforme os fragmentos vão se sucedendo, as vozes do escritor e do autor do diário se entrelaçam, e um painel intrincado de sobreposições discursivas vão se completando.

    Romance que flerta com a narrativa epistolar e com a autoficção, Veste-me em teu labirinto prega peças no leitor e provoca reflexões sobre vida, amizade e escrita.


Texto do poeta Raul K. Souza que está na orelha do livro:


"    Quando recebi o convite do Daniel para escrever sobre o Veste-me em teu labirinto, me tremi todo de empolgação. 

    Daniel faz um jogo em seu romance de estreia, Veste-me em teu labirinto, em tom ora documental, ora de detetive noir. O narrador recebe a tarefa de biografar a vida de seu amigo Caetano a partir dos diários do mesmo. Acrescenta-se uma camada, Caetano está morto, mas isso não é spoiler.

    Nas primeiras páginas do Veste-me..., nós somos orientados pelo narrador Daniel, não o Daniel autor, mas o Daniel investigador-narrador-personagem, que vai nos colocar diante de um morto que fala, ao estilo machadiano. Todavia, a novela não é sobre isso, é também sobre a vida de Caetano, sobre sua sexualidade e sobre seus diários. 

    A novela ganha mais uma camada, quando em Off, o Daniel autor da novela (agora o nosso Daniel), me conta que Caetano foi um grande amigo seu, mas se este deixou diários para este nosso Daniel, isso é um mistério.

    Como nas melhores histórias homoeróticas, Veste-me... explora a vivência e as aventuras sexuais de uma personagem homossexual/bissexual que constrói afetos e que está no Brasil repressor no final do século XX e mais otimista do início do século XXI".


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Serviço


Veste-me em teu labirinto, Daniel Osiecki.

Editora Caravana

Gênero: romance

R$ 54,90

https://caravanagrupoeditorial.com.br/produto/veste-me-em-teu-labirinto/ 


Daniel Osiecki (Foto: André Osiecki)

Daniel Mascarenhas Osiecki nasceu em Curitiba, em 1983. Escritor e editor, publicou os livros Abismo (2009), Sob o signo da noite (2016), fellis (2018), Morre como em um vórtice de sombra (2019), Trilogia Amarga (2019), Fora de ordem (2021) e 27 episódios diante do espelho (2021). É editor-chefe da Revista TXT e editor-adjunto na Kotter Editorial. Mestre em Teoria Literária e organizador do sarau-coletivo Vespeiro - vozes literárias.


 

ESTRELA DIFUSA

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