sexta-feira, 10 de novembro de 2023

ESTRELA DIFUSA

 


O tempo é o fator que talvez possa explicar melhor algumas coisas que simplesmente não escolhemos; ou melhor, insistimos em dizer que não escolhemos. Geralmente elementos passionais, arrebatadores, de fato têm um poder sobre nós que muitas vezes desconhecemos. Questões religiosas, ideológicas, políticas, muitas vezes seguem padrões passionais bastante semelhantes, e muitas vezes levam à cegueira, a conflitos, a rompimentos.

Dito isso, volto ao ano de 1989. Mais precisamente a uma quarta-feira fria, dia 21 de junho. Naquela época tínhamos um novo membro na família, meu irmão mais novo, que tinha pouco mais de sete meses, e a casa estava agitada. Não tenho muitas lembranças do dia, então possivelmente devo ter ido para a escola à tarde, e voltei no fim do dia.

Lembro de meu pai estar nervoso por causa de um super jogo importante, uma final em que boa parte do Brasil estaria ligada. O time para o qual meu pai torcia, e que virou o meu time por causa dele, era o Botafogo. É curioso (penso nisso hoje, mais de trinta anos depois) comparar a visão de meu pai, um homem de 39 anos de idade, com a minha, um piá de 6, sobre o time para o qual ambos torcíamos.

Me descobri botafoguense naquele ano, mais precisamente em um jogo do Botafogo contra o Bangu, uma semana antes da final, que deu 0x0. Lembro que me enfeiticei pela camisa listrada em preto e branco, pelo brasão com uma estrela solitária, e por um time mágico que trago comigo até hoje, o qual sei a escalação depois de tantos anos. Era fã de Josimar, Paulinho Criciúma, Maurício, Luisinho, Gotardo, Ricardo Cruz e tantos outros.

Possivelmente aquele elenco se tornou tão importante pra mim porque foi um momento de  descoberta, das primeiras impressões na infância e da consciência própria, quer dizer, foi naquele momento que pensei pela primeira vez na minha relação com meu pai. 1989 foi um ano de crescimento. As minhas lembranças antes desse ano são muito nebulosas, incertas, e seguramente por começar a acompanhar aqueles jogos junto àquele turbilhão de sensações tornou tudo tão especial.

Quando assistimos ao jogo, mesmo eu tendo apenas 6 anos e tendo aula no outro dia, meu pai deixou que eu ficasse até mais tarde e assistisse à final com ele. Lembro de um time modesto, sem estrelas, sem craques, mas aguerrido e disputando de igual para igual contra um Flamengo muito superior. O Flamengo tinha Zico, Bebeto, Leonardo, Zinho, Aldair, porém nós tínhamos (e ainda temos!) algo inexplicável que possivelmente outro clube não tenha, algo maior do que jabás, do que imprensa chapa branca, do que títulos internacionais; ou seja, temos uma espécie de tendência ao sofrimento que geralmente se manifesta como um contágio psíquico.

Botafoguenses se reconhecem como companheiros de inconsciente coletivo, como membros de um petit comitê seleto que sempre é ambivalente, sempre rocambolesco como uma novela mexicana. Porém, o botafoguense, ao contrário dos espectadores de novelas, tem certeza de que o final não será feliz. Sabemos disso e estamos vacinados, mas como temos lapsos de memória e aqui volto à questão do início, ou seja, ao fator passional que quase sempre se torna maior, sofremos. Isso se parece muito com a ideia nietzscheana da lei do eterno retorno.

O Botafogo se sagrou campeão estadual de 1989, e assisti àquela fita VHS (que meu pai gravou da TV Manchete, com narração de Paulo Stein e comentários de Márcio Guedes e João Saldanha) mais vezes do que poderia contar. Tudo parecia muito difícil naquele jogo. Primeiro tempo em 0x0, chances do Flamengo. Mas no segundo tempo a coisa mudou, ao menos no começo, quando o reserva Mazolinha (que substituiu Gustavo, que por sua vez substituiu Jefferson) cruzou pela ponta esquerda para nosso ponta-direita Maurício (a mística da camisa 7!), e fizemos 1x0, aos 12 do segundo tempo.

Claro que o restante do jogo, que foi interminável, foi o Flamengo atacando e nós nos defendendo. Nos sagramos campeões e vi meu pai chorando pela primeira vez, e isso é muito forte na vida de um piá de 6 anos: ver seu pai chorar por um motivo que não entende direito. Aquele foi o meu momento de epifania que trago comigo até hoje.

Infelizmente meu pai não pôde ver a ótima campanha do Botafogo em 2023, mesmo levando vários revezes seguidos no segundo turno. Ele teria gostado de ver seu time, depois de 28 anos, chegar tão longe. Leva ou não leva o título desse ano? Quem vai saber? Se não levar, a memória do Seu Fernando continua firme, sempre lembrado a cada vez que passo os olhos pelo brasão com a estrela solitária e, muitas vezes, me pego olhando para o escudo do Botafogo (modesto como deve ser) aqui na porta do escritório. Olho para a estrela como se dialogasse com meu pai, como se pedisse um conselho, como se perguntasse sua opinião. E aí, seu Fernando, levaremos o caneco?  

 



sábado, 16 de setembro de 2023

Atmosfera das grutas, de Daniel Osiecki

 






O médico-poeta Miguel Torga cunhou palavras de sofrimento sem perder a altivez diante do câncer que o consumia, altivez que nos faz lembrar o que é o sabor da vida plena e prestável, pois todo poeta que se preza e vive, literalmente, no fio da navalha, não pode nem deve temer a morte. Só que a morte do nosso próximo mais próximo é difícil de ser subtraída, já que ao poeta não basta ser humano, há que ser super-humano e é dessa forma que Osiecki enfrenta a atmosfera das grutas, aquelas que ainda não conhecia quando diz dos ecos ontológicos de dentro das grutas turvam a visão de qualquer pessoa.

O autor dedica a obra ao pai e ao irmão: aquele chamado por ele de “mestre absoluto” e este, sua “primeira influência musical”. Só que a música tem que continuar, pois nenhum de nós tem a senha que irá nos sacar do tabuleiro de xadrez da vida. Quem sabe, hoje mesmo, somos a peça da vez e Daniel sabe agora que na atmosfera das grutas há um silêncio turvo de cemitério / de fim sem aceno final / tuas pálpebras não se movem / abandonado numa mesa fria / numa tarde fria.

Ao irmão que ficou para com ele dividir a dor de viver sem o pai-mestre e o irmão-inspiração, Osiecki sai fora da casa, num grito surdo (que pode ser de qualquer um de nós, meros sobreviventes/resistentes) já que, em seu coração e no verso ecoa um grito além / é nessa noite insana / em uma vida inteira dentro de um copo de cerveja / que não termina em uma canção qualquer / sorve a embriaguez que lhe suaviza as entranhas.

O autor ainda não sabe qual será o fim da poesia / suas asas atrofiaram até a última célula / agora nós choramos como qualquer outro / assim como morreremos iguais a qualquer outro.

Daniel traz seus fantasmas todos da atmosfera das grutas, mas consegue multiplicar a própria dor-poesia com a mãe, numa espécie de consolo visceral quando fala que o ventre da mãe está seco como o coração do pai está vazio.

Osiecki sabe do efêmero, agora que o presenciou em dose dupla, num curto espaço de tempo, onde alguns poderiam entregar-se a qualquer tipo de vício, mas não; ele volta ao verso, à música que lhe dilacera a alma de saudade, a cada nota, a cada letra, a cada choro da guitarra, a cada som-catarse que ele extrai de seu instrumento; mas ainda assim ele consegue dar as mãos à Poesia, essa mulher indomável, porém generosa quando se trata de consolar seus filhos nascidos no útero da memória dos que vieram somar.



Renato V. Ostrowski

rvostrowski@hotmail.com

Campo Magro, 16 de setembro de 2023.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

RESENHA EMBOSCADA

 



Quando a autora desta obra diz, "sou gaúcha que não tem paradeiro", entendo-a de fato como um gaudério, aquele que veio ao mundo, como ela mesmo diz, sem paradeiro. Hoje vive aqui, “amanhã sabe-se lá. Certo é que escreverei até o fim, pois sempre haverá emboscadas”.

Mesmo inquieta, Kátia sempre está sujeita a emboscadas, pois acaba se envolvendo com movimentos literários, e não existe terreno mais perigoso do que este, o da arte por si só, sem ambição, já que ela não se enquadra entre os escritores que buscam fama e dinheiro.

Em Emboscada (Vespeiro Edições) ocorre, com certeza, o nascimento (que faz jus ao seu sobrenome) de uma nova forma de escrever, numa espécie de simbiose, como nas plantas, uma associação em que ambas as espécies dependem uma da outra, recebendo benefícios mútuos.

No poema que abre o livro e dá título à obra, Kátia Nascimento diz a que vem, afirmando através da boca do personagem que “a vida, de tocaia, espreita na porta de casa. O universo conspira para que finalmente alguém pague a conta”.

No conto Araucária, a autora diz “há tanto tempo nesta cidade e não havia ainda se permitido desfrutá-la, contemplá-la”...”o trauma infantil virou adulto. E ela segue treinando para ser feliz.”

Já no conto Inóspito café, Kátia dá voz à Valentina, mulher universal que “por necessidade, passou a vida oprimindo vaidades”. Também que "discriminada porque sabia conjugar verbos perfeitamente”; ou"ela não consegue disfarçar o que sofre por permitir” e Valentina se conforta com o pouco ao se autoanalisar para dizer que “a vida é como um passar café. Opta-se pela qualidade da água, do café e do coador. Até mesmo do bule. E esta alquimia é a arte". É aqui que Kátia Nascimento se torna coautora de si mesma quando busca a própria arte, o fazer literário, mesmo ciente de que “ainda sofremos o fardo de ser mulher. Se não podemos ser o que somos, é realmente um fardo”.

Quando se refere à morte, na forma poética, a autora fala dela, a Morte, com uma interrogação: “Há sentimentos que se assemelham à morte. E, como morte, deveriam ser interrompidos?” Neste ponto Kátia vai além, quando no conto O corredor introduz a morte como ela é, inevitável, e se apresenta na família, que não conseguiu ficar junta, de seis filhos, numa espécie de diáspora, foi cada filho, um em cada canto diferente, porque junto não dava certo, mas tiveram que se juntar em torno da mãe moribunda, como sói acontecer nas melhores famílias.

Kátia Nascimento coloca o fio de prumo numa espécie de trilogia, no corredor da morte, desembocando no conto A nudez do pai, em que a enfermidade do protagonista “o deixara com sequelas a lhe perseguir a vida toda. Frustrado caíra em depressão muitas vezes”, e também ”eu sou vivo-morto – costumava dizer”.

Porém, nem só de dor e desamparo é feita a obra, e a autora dá uma guinada de cento e oitenta graus no conto O banho do pecado, onde se lê que “embaixo do chuveiro é um dos melhores lugares para pensar, para chorar, e também para ser feliz”.

No conto Culpada, Kátia retorna ao tema principal, pois “a vida é como uma arapuca. Quase sempre caímos nela. Às vezes fazemos questão de não sair. É preciso vigiar-se”, e nessa vigília a personagem sente-se culpada ao comprar um filé-mignon com o parco salário de professora que recebe, sabendo que tantos e quantos passam fome onde “passou dias com a sensação de que deveria pedir desculpas por poder comer um filé”.

Kátia Nascimento retorna com o poema Tempo, com esse “pudera voltar no tempo. Transgredi-lo. Enganá-lo. Arrancaria o que não me permitiu. Pudera voltar. Só voltar. Mostraria do que sou capaz. No viver. No corpo. No espírito. Provaria como sou intensa”.

De fato a autora mostra ser capaz e intensa ao ponto de levar o leitor até o final.

 

***

 

 

Campo Magro, 16 de maio de 2023.

Renato V. Ostrowski

                                                                                                                            rvostrowski@hotmail.com

sábado, 18 de fevereiro de 2023

40 ANOS E O PÉRIPLO DE ULISSES EM CURITIBA



Você lembra onde estava há exatos quarenta anos? Dificilmente quem lê os textos aqui no Távola Redonda tem mais de quarenta anos. De qualquer forma, você pode não se lembrar onde estava ou o que fazia há quatro décadas, mas seguramente ouviu histórias sobre episódios que aconteceram muito antes de você nascer, ou de coisas que aconteceram enquanto você ainda era uma criança.

Há exatos quarenta anos, em uma manhã quente e ensolarada em Curitiba, mais precisamente às 9h10, eu nasci. Na Maternidade Nossa Senhora de Fátima, no Centro, um piá assustado e de olhos arregalados (segundo meu pai) nasceu e chorou pouco. Mais observei o que acontecia do que fiz barulho. Anos depois meu pai disse que foi por isso que virei escritor.

Logo depois de ver o segundo filho e se certificar de que estava saudável e tudo bem, o jovem pai de família, como não tinha o que fazer, pois minha mãe estava bastante sedada (nasci de cesariana) e não tinha nenhum parente ali naquele momento com quem meu pai pudesse conversar e passar o tempo, decidiu dar uma volta pelo centro da cidade. Como estava de férias, não tinha horários a cumprir e, desde o ano anterior, quando ouvira sobre o novo filme de Ridley Scott (Blade Runner - o caçador de androides), queria assisti-lo.

Depois de almoçar algum junk food pela região, andando pela Westphalen e parando bem em frente ao Cine São João (infelizmente hoje transformado em uma loja de departamento), nota que está em cartaz o filme de Scott. Não pensa duas vezes, compra sua entrada, mas pondera: meu filho nasceu e minha mulher está sozinha no hospital. Mas logo se tranquiliza, pois eu havia sido levado pelas enfermeiras e minha mãe demoraria a tarde toda para acordar. Entrou e assistiu ao filme que narra as aventuras de Rick Deckard, um caçador de androides em crise existencial (interpretado por Harrison Ford).

Alguns anos depois, eu já com cinco ou seis anos, passei pela sala e meu pai assistia a um filme escuro, com carros futuristas, com muita chuva e com o Capitão Solo (como eu me referi a Harrison Ford naquele momento). O velho me chamou, me pegou no colo e me contou a história do dia em que nasci, que ele assistiu no cinema àquele filme que naquele momento assistia em VHS no nosso primeiro vídeo-cassete. Naturalmente não me interessou assistir àquele filme naquele momento, com legendas, praticamente em PB, e assim os anos se passaram e conforme crescia, fui pegando gosto por cinema. Possivelmente graças à história contada tantas vezes.

Já adolescente, passei a aguardar o dia de meu aniversário principalmente para ouvir (era infalível!) meu pai contar a história do 18 de fevereiro de 1983, quando um jovem bancário de 32 anos foi ao cinema assistir Blade Runner enquanto a esposa descansava e seu filho recém-nascido dormia. Eu sempre escutava como se fosse a primeira vez. Sempre perguntava mais detalhes, se havia outros filmes em cartaz; perguntava sobre o tempo, sobre o que ele fez depois da sessão, se minha mãe ficou braba por ele ter ido ao cinema, etc. Sempre aparecia algum detalhe novo ou esquecido do ano anterior.

Em 2022, ao completar 39 anos, fizemos uma reunião singela só com companheira, pais, irmãos e vó. É claro que depois dos parabéns, sem eu pedir, olhando fixo para meu pai, como cúmplices de uma história protagonizada apenas por nós dois, me olhou e contou sobre uma manhã quente de fevereiro em 1983, quando foi assistir ao filme …

Essa foi a última vez que ouvi essa história. Depois da festinha de aniversário comentei com todos ali que no próximo ano faria uma festa de arromba pra comemorar meus 40 anos. Mais interessado do que na festa com música, show (tocaríamos com o Comanches nessa festa, a banda que temos em família), bebida e amigos, eu queria ouvir mais uma vez a história do dia 18 de fevereiro de 1983, quando um jovem de férias foi assistir Blade Runner no Cine São João enquanto a esposa descansava de uma cesariana e seu filho recém-nascido dormia.

Nesse 18 de fevereiro de 2023, exatos 40 anos depois, assisto Blade Runner para tentar emular uma jornada feita por meu pai, tal qual Ulisses voltando para Ítaca, tal qual Leopold Bloom retornando para sua Molly no fim do dia. Nesse dia não ouvirei a história do 18 de fevereiro de 1983 e terei que me acostumar com isso. Mais tarde vou ali em frente à Maternidade Nossa Senhora de Fátima e vou caminhar pela Visconde de Guarapuava até a Westphalen para prestar tributo ao meu Ulisses.

ESTRELA DIFUSA

  O tempo é o fator que talvez possa explicar melhor algumas coisas que simplesmente não escolhemos; ou melhor, insistimos em dizer que não ...