domingo, 26 de maio de 2013

JOSÉ CHAGAS: DO EXISTENCIALISMO TARDIO AO FLERTE COM O CONCRETISMO

 
 
As fronteiras geográficas que nos separam vão muito além de questões econômicas ou políticas. O distanciamento do qual somos reféns em um país vasto como o Brasil é, muitas vezes, irredutível. É claro que vivemos na era da globalização e do bombardeio da informação vinte e quatro horas por dia, mas mesmo assim há um distanciamento cultural gritante dentro do próprio território nacional. Há uma diversidade ímpar que nem sempre é compreendida ou partilhada, o que com frequência acaba empurrando os indivíduos para caminhos completamente desconhecidos para o outro.

Seria bastante difícil há duas décadas um livro de um poeta maranhense, não muito conhecido fora das fronteiras de seu estado, chegar em minhas mãos, em Curitiba. Ainda não era comum o uso da internet como é hoje, e as publicações e informações em geral ficavam restritas a veículos impressos. Mas já no ano de 2007, assistindo a uma reprise (online) do programa Espaço Aberto Literatura, apresentado por Edney Silvestre, descobri um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos: José Chagas, de São Luís do Maranhão.

José Francisco das Chagas nasceu em Aroeiras, distrito de Santana dos Garrotes, Paraíba, em 1924. Filho de lavradores, da infância à adolescência trabalhou no cultivo da terra. No início dos anos 40 mudou-se com a família para o Maranhão e em 1948 radicou-se em São Luís. Muito cedo mostrou intimidade com as palavras, e ainda adolescente arriscou seus primeiros sonetos. No início dos anos 50 passou a conviver com poetas e intelectuais locais ligados a uma espécie de existencialismo sartreano tardio. Teve contato direto com poetas da nova geração que combatiam nomes consagrados apegados ainda à forma parnasiana. Da nova geração, Chagas conviveu com Bandeira Tribuzi, Ferreira Gullar, Carlos Madeira, José Sarney e outros intelectuais que seguiam certos aspectos da geração de 45, como a volta à forma fixa, à métrica, rima, etc.

Em 1998 foi lançado Antologia Poética pela Editora Topbooks em parceria com a Editora da Universidade Federal do Maranhão. Na antologia encontra-se sua produção mais interessante desde seu primeiro livro, Canção da expectativa (1955), passando por obras conhecidas como Lavoura Azul (1974), Os canhões do silêncio (1979) e uma das obras poéticas brasileiras mais relevantes do século XX, Alcântara (1994). 

Em Canção da expectativa Chagas oscila muito entre formas livres e sonetos alexandrinos. Aliás, essa oscilação de forma será muito comum em toda sua obra futura. Nos poemas que não têm propriamente uma forma fixa, mas rimas, Chagas explora bastante as antíteses. Nota-se a visão existencialista de simplesmente ser (estar) e não ser mais (não estar).

No livro O Discurso da Ponte (1959) vai se evidenciando uma preocupação social em sua poética. Não chega a ser uma poesia propriamente engajada, panfletária, mas atenta às mazelas de uma classe dominante opressora. Chagas desfila por diversos estilos do fazer poético com uma desenvoltura singular. Passeia por versos livres, formas fixas, flerta frequentemente com o concretismo tornando seus versos leves e diretos.

Recorrente em sua obra, a metalinguagem é o leitmotiv de Lavoura Azul. Em vários poemas deste livro há uma voz que denuncia, como um arauto iconoclasta, que nada existe, que estamos sós em um mundo cruel onde não há divindade alguma.

E uma bíblia nova
conta a lenda triste
do que seja a prova
de que nada existe.

A matéria prima do poema homônimo é a própria abstração do fazer poético, ou seja, não ter matéria prima concretizável. Lavoura Azul, basicamente, é um poema metalinguístico. Chagas discorre sobre a solidão e a dificuldade de transformar sonhos em palavras. A própria forma do poema (soneto) remete ao fazer poético.

A decadência do meio urbano foi se tornando tema constante na obra de Chagas ao longo dos anos. Seu livro mais completo em todos os sentidos é Alcântara, no qual Chagas cria uma espécie de epopeia moderna sobre a decadência e o abandono da cidade de Alcântara, no Maranhão, que serve como um microcosmo dos grandes centros urbanos contemporâneos, com todas sua mazelas possíveis e imagináveis.

Os poemas de Alcântara não são separados por títulos (comum na obra de Chagas) nem por temas. O livro todo é um grande poema no qual aparecem as características caras a Chagas: crítica social, diversificação de estilos poéticos e questionamentos constantes. Em várias passagens Chagas se refere aos "filhos de Alcântara" como criaturas enjeitadas de um meio decadente sem perspectivas de um futuro melhor. 

O vento é um filho legítimo
de Alcântara
só ele sabe a fala materna das águas
mas é dispersivo e esquece
a leitura dos dias

Ou seja, ninguém se considera de fato filho legítimo de Alcântara. Um abandono existencial perpassa todos os versos. Há uma presença inevitável e opressora de desconsolo, dor e sofrimento. Talvez seja o livro mais niilista de José Chagas. Nota-se claramente a  iminência de uma tragédia. Chagas usa um tom sombrio para se referir ao abandono. A desolação de Alcântara simboliza a desolação da condição humana, se aproximando de A Queda da casa de Usher, de Edgar Allan Poe.

Em todos os segmentos do poema há uma espécie de interrupção da realidade por versos rimados. A rima aqui é um artifício usado por Chagas para simbolizar uma intervenção momentânea, uma pausa na dura realidade e no sofrimento que dá lugar a breves momentos lúdicos. O ato de escrever sobre Alcântara em ruínas é claramente assumido, o que volta a um artifício bastante usado por Chagas em toda sua obra: a metalinguagem.

Esta Antologia Poética se encerra com uma seção intitulada Inéditos, com poemas não publicados até então. José Chagas mantém nos seus inéditos suas características principais, como o apego ao soneto e à forma livre ao mesmo tempo, a metalinguagem, a denúncia social, etc. Poeta praticamente desconhecido fora do Maranhão, é uma das vozes mais autênticas e originais da poesia brasileira contemporânea.

     

domingo, 12 de maio de 2013

PEQUENO PERFIL CURITIBANO: NUMA TARDE APOCALÍPTICA E NOUTRA ENSOLARADA



(Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Maio 2013)

Descobrir autores novos é uma experiência interessante. Ler algum desconhecido que pouca gente leu é um desafio e ultimamente tornou-se uma obsessão. Nas minhas andanças pelas livrarias e sebos de Curitiba em busca de autores curitibanos não contemplados pela grande mídia descobri muita gente. Escritores que estão escondidos em suas alcovas bem longe do público leitor.

Em uma visita à loja das Livrarias Curitiba da Rua XV, num daqueles momentos ímpares em que entramos em uma livraria sem compromisso algum, sem nenhuma pressa, escondido entre Cristóvãos Tezzas e Daltons Trevisans (na seção de autores paranaenses), estava um pequeno volume intitulado Pequeno Perfil curitibano:numa tarde apocalíptica e noutra ensolarada, de Jul Leardini. Mais que prontamente retirei o exemplar da estante e olhei nas outras prateleiras tentando encontrar outros livros do mesmo autor. Não encontrei, e com o livro devidamente comprado, não pude parar de pensar no título, que me encantou. Esse é o perigo em encontrarmos um conterrâneo literato: criamos mil expectativas.

Jul Leardini nasceu na cidade de Cianorte, em 1961, mas veio cedo para Curitiba, com cinco anos de idade. Publicou Contos e Encontros (1991), No Mundo dos seres diáfanos (2003), Pequeno perfil curitibano: numa tarde apocalíptica e noutra ensolarada (2005) e peças de teatro, como Pacto da Mediocridade (2004), O Discurso da América (2004), Aos poucos ouvidos moucos que virão falaremos um pouco da nossa escuridão (1999) entre outras.

Em Pequeno Perfil Curitibano: numa tarde apocalíptica e noutra ensolarada (publicado pela Lei de Incentivo à Cultura), Jul Leardini reúne sete contos que não apresentam nenhuma unidade temática entre si. O conto inicial, que dá título ao livro, passa a falsa impressão de que o autor abordará algumas questões sobre a origem da casmurrice curitibana. Neste primeiro conto Leardini tenta entrelaçar duas narrativas paralelas, mas o resultado é uma breve e rasa tentativa de fluxo de consciência. O título do conto é muito mais denso do que o próprio conto.

O conto seguinte, O herói brasileiro, apresenta diálogos artificiais demais em situações pouco exploradas que acabam se tornando amontoados de acontecimentos que tentam fazer algum sentido. A falta de verossimilhança é uma constante em quase todos os contos. Basicamente, o conto narra uma situação em que um empresário rico da capital vai até uma cidade não nomeada do interior para comprar as últimas terras disponíveis ainda nas mãos de um fazendeiro local. Leardini evidencia o tempo todo um maniqueísmo juvenil e panfletário no qual o explorado (o fazendeiro com princípios morais e éticos) não se corrompe ao poder avassalador capitalista. Leardini também peca na construção destes diálogos entre o empresário e o fazendeiro usando em demasia uma linguagem fora de contexto e o pretérito imperfeito.

Nessa altura, pessimista por natureza, não imaginava que pudesse encontrar algo relevante pela frente. O terceiro conto, O Espelho, faz justiça à força e beleza do título do livro. Conto denso, esteticamente bem construído, alterna duas vozes de um personagem enigmático que faz referência ao assassinato de uma mulher. Durante toda a narrativa há uma atmosfera onírica, delirante e noir que confere uma marca autêntica ao autor. As imagens refletidas em um espelho em estilhaços tratam da questão da dificuldade do indivíduo em se encontrar. É uma belíssima metáfora sobre identidade.

O Espelho é o que o livro apresenta de melhor. A relevância do livro começa e termina com este conto. Os contos que vêm a seguir voltam a apresentar os problemas de estrutura dos contos iniciais. Contradança é composto por uma quantidade absurda de adjetivos, tornando a leitura complicada e aborrecida. A composição da narrativa é descontínua, quase ao nível da redação de vestibulandos.

A seguir vem Tal um, qual outro, conto em que Leardini deixa transparecer pequenas lições de moral sobre honestidade e a culpa daqueles que são desonestos. Isso depõe contra sua literatura, pois não é papel da ficção apresentar conflitos moralizantes para, em um movimento catártico, chegar a um momento nevrálgico. Também há claramente um descontrole, uma falta de domínio do uso do foco narrativo.

Sete de Setembro e O Cisne fecham o volume sem surpreender. Também mostram um autor inexperiente que não domina a técnica narrativa e com exceção do belíssimo O Espelho, não tem muito a dizer na narrativa curta. Quem sabe Jul Leardini guarde um volume inédito seguindo a linha de O Espelho. Minha busca ainda não cessou.

ESTRELA DIFUSA

  O tempo é o fator que talvez possa explicar melhor algumas coisas que simplesmente não escolhemos; ou melhor, insistimos em dizer que não ...