terça-feira, 30 de agosto de 2022

A NOVA PROSA MINEIRA

 



Não é de hoje que Minas Gerais é um dos principais celeiros literários do Brasil. Forçando a memória rapidamente, de cara já  pensamos em nomes como Drummond, Guimarães Rosa, Murilo Mendes, Paulo Mendes Campos, Darcy Ribeiro, Conceição Evaristo, Fernando Sabino, Rubem Fonseca, e a lista continua.

Recentemente tive o privilégio de conhecer dois autores mineiros que estão em plena atividade. Um mais experiente, já com três livros publicados; outra é estreante e, já em seu livro de estreia, mostra a que veio e promete um projeto literário promissor.

Comecemos por Rebeca Maia, autora de Cerveja Amarga (2022, Editora Ipêamarelo). Rebeca é uma jovem escritora de Belo Horizonte que traz em seu livro encontros e desencontros, vozes que se calam, relações desfeitas e rebeldia. As personagens de Cerveja Amarga são mulheres fortes sempre em procura de algo, independência, carreira profissional, destruição do patriarcado; é um dos acertos da autora a escolha pela primeira pessoa em quase todos os 11 contos do livro. Os textos funcionam como flashes intimistas de mulheres que não se curvam a estereótipos arcaicos e tampouco a vozes patriarcais opressoras. Destaque para os contos Sinestesia, Cerveja amarga e Cogito, ergo sum

Mesmo discordando da autora em algumas escolhas sintáticas, como em alguns usos de adjetivos, por exemplo, Rebeca Maia mostra que é uma prosadora nata. Já ansioso pelo segundo livro. 

O segundo autor é José Vecchi de Carvalho, autor do forte e impactante Cada gota de silêncio (2021, Editora Ipêamarelo). Vecchi nasceu em Cataguases. Publicou os livros Duas Cruzes (2018, Kazuá) e Contradança (2020, Estrondo), ambos de contos.

No seu terceiro volume de contos, Vecchi nos apresenta um universo, diferente de Rebeca Maia, que é de dentro para dentro, de dentro para fora, porém sem tornar-se panfletário ou algo parecido. 

Nos 19 contos que compõem o livro, por mais que sejam independentes entre si, podemos vislumbrar uma espécie de fio condutor. Não que os textos possam ser lidos como continuação um do outro, mas se aproximam naquilo que o autor (acertadamente) deixa nas entrelinhas para ser degustado pela leitora e pelo leitor atentos. 

Há de se levar em consideração em Cada gota de silêncio, além das personagens marginalizadas socialmente, uma personagem inerente aos textos e que aparece com frequência: os diversos tipos de silêncio. Essa presença quase que metafísica do silêncio na prosa urbana de Vecchi carrega conceitos muitas vezes díspares, como o vizinho que vê um conhecido de infância se afundar no crack, um pai que nunca retorna pra casa, um casal em crise que vive à beira de um abismo silencioso e, só por isso, não o transpõe. 

Enfim, são muitos os silêncios com os quais nos deparamos no livro, mas talvez o mais forte seja o que acontece no conto homônimo, em que uma personagem jovem e atormentada fala muito sem proferir uma palavra sequer. O fim trágico nos aponta isso, o que não é spoiler, mas uma espécie de prenúncio de tragédia.

Autores que valem a pena serem descobertos e degustados sem parcimônia, José Vecchi de Carvalho e Rebeca Maia já fazem parte da forte e profícua galeria de contistas brasileiros.


Serviço

Cada gota de silêncio (contos, 2021. Ipêamarelo)

José Vecchi de Carvalho


Cerveja Amarga (contos, 2022, Ipêamarelo)

Rebeca Maia    

 

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

VESTE-ME EM TEU LABIRINTO, DE DANIEL OSIECKI*

 



Acabo de ler Veste-me em teu labirinto (Editora Caravana), esta bela estreia no romance de Daniel Osiecki, que já publicou vários livros de poesia e contos. Nele, o narrador Daniel, escritor e publicitário, nos conta que recebeu o diário de um amigo já falecido, chamado Caetano. Nesses diários, lemos as reminiscências de um homem que se assumiu gay tardiamente, após um casamento fracassado e dois filhos que não aceitam a sua "escolha”. 


Há uma forte carga emocional nas palavras de Caetano, pelos traumas sofridos, a dúvida, a rejeição da família e a solidão, além de passagens explícitas sobre suas experiências sexuais. Entretanto, Daniel, o escritor-narrador, nos informa que Caetano tinha o desejo de transformar a sua história em um romance, e que ele fará “correções” no diário, em nome da clareza e da fluidez. 

A partir daí, a narrativa se torna extremamente engenhosa, pois não sabemos até que ponto o que estamos lendo são as lembranças de Caetano ou a ficção do narrador Daniel – como na passagem em que a personagem Alice lhe conta sobre uma experiência que teve com Caetano, que logo em seguida aparece, ipsis literis, em seu diário, ou como quando Caetano e Daniel nos contam versões conflitantes sobre o mesmo fato.

Daniel Osiecki maneja com bastante segurança esse jogo de espelhos, numa prosa fluida, mesclando realidade e ficção, em duas camadas sobrepostas, onde ele cria o personagem-narrador Daniel, que por sua vez recria o personagem Caetano. Mas o que importa, ao final, além da sofisticação na narrativa, é a empatia e a compaixão do autor e seu narrador, numa comovente ode à amizade, ao amor e à compreensão, neste mundo e nesta época tão carentes de afetos.

*Marcelo Nunes nasceu em São Paulo e é escritor, tradutor e artista plástico. É autor do romance Nirvana (Kotter Editorial, 2021).

Serviço:

Lançamento de Veste-me em teu labirinto (Editora Caravana)
13 de agosto - 14h
Livraria Vertov - R. Visc. do Rio Branco, 835 - 2º andar - Mercês, Curitiba
R$ 45


RÉQUIEM PARA DÓRIS

 

Cachorra Baleia Espreguiçando - Marco de Sertânia



Não são raras as aparições de cães na literatura. Uma das representações mais tocantes é o incrível Argos, o cão de Ulisses, da Odisseia de Homero, que aguarda seu dono por 20 anos. Ulisses, ao voltar da guerra de Troia, ao chegar em casa encontra seu cão abandonado em um monte de estrume de vaca. O cão, que o esperou durante toda sua ausência, o reconhece quando seu dono se aproxima e, como tendo cumprido sua missão, mexe as orelhas, abana sua cauda e morre.
Outros tantos cães na literatura são icônicos, como o machadiano Quincas, que herda o nome e os olhos do dono e depois de sua morte continua com alguns trejeitos do dono morto, e Baleia, a doce e forte cadelinha de Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
Baleia está presente em todo o périplo pelo qual a família de Fabiano passa,  e assume papel de muita relevância na narrativa. Tem, inclusive, voz em um capítulo em que sonha que anda livremente em um paraíso de preás. Cena lírica e tocante que é uma espécie de válvula de escape na aridez do romance. Lírica também como foi sua morte, mas isso deixo para o leitor e para a leitora que ainda não se embrenharam pela obra-prima de Graciliano.
Poderia citar ainda outros tantos exemplos, como a Kashtanka, de Tchekhov, ou o Olho de Boi, de Dickens (Oliver Twist) e segue a lista, mas outro cão que foi importante demais foi Dóris, que fez parte de minha vida de agosto de 2008 (com pouco mais de um mês de idade) até ontem, quando morreu aos 14 anos.
Dóris recebeu seu nome (ideia de meu irmão) graças ao icônico e lisérgico ônibus que transporta a banda fictícia Stillwater, no filme Quase Famosos (2000). Quando a trouxemos para presentear minha mãe por seu aniversário, Dóris cabia em uma sacola minúscula, e exigia cuidados extremos na alimentação e todo o resto, pois era muito nova e frágil. 
Curiosamente quando a trouxemos, eu lia naquela tarde o romance de Saramago, A viagem do elefante, que também tem sua ação girando em torno de um animal. Dóris me fez companhia em tantas noites de leitura, estudos e escrita.
A questão com todas essas personagens literárias e Dóris é pra mostrar o quão poético pode ser a relação do humano com um animal, nesse caso com um cão. Sempre quando retornava à casa de meus pais, Dóris, tal qual Argos aguardando Ulisses, vinha me receber com afeto e efusão; tal qual Argos abanava a cauda e como Baleia gania e chorava alegre por me ver.
Dóris cumpriu seu papel com maestria e fidelidade inabaláveis. Fará falta.   

ESTRELA DIFUSA

  O tempo é o fator que talvez possa explicar melhor algumas coisas que simplesmente não escolhemos; ou melhor, insistimos em dizer que não ...