sábado, 18 de fevereiro de 2023

40 ANOS E O PÉRIPLO DE ULISSES EM CURITIBA



Você lembra onde estava há exatos quarenta anos? Dificilmente quem lê os textos aqui no Távola Redonda tem mais de quarenta anos. De qualquer forma, você pode não se lembrar onde estava ou o que fazia há quatro décadas, mas seguramente ouviu histórias sobre episódios que aconteceram muito antes de você nascer, ou de coisas que aconteceram enquanto você ainda era uma criança.

Há exatos quarenta anos, em uma manhã quente e ensolarada em Curitiba, mais precisamente às 9h10, eu nasci. Na Maternidade Nossa Senhora de Fátima, no Centro, um piá assustado e de olhos arregalados (segundo meu pai) nasceu e chorou pouco. Mais observei o que acontecia do que fiz barulho. Anos depois meu pai disse que foi por isso que virei escritor.

Logo depois de ver o segundo filho e se certificar de que estava saudável e tudo bem, o jovem pai de família, como não tinha o que fazer, pois minha mãe estava bastante sedada (nasci de cesariana) e não tinha nenhum parente ali naquele momento com quem meu pai pudesse conversar e passar o tempo, decidiu dar uma volta pelo centro da cidade. Como estava de férias, não tinha horários a cumprir e, desde o ano anterior, quando ouvira sobre o novo filme de Ridley Scott (Blade Runner - o caçador de androides), queria assisti-lo.

Depois de almoçar algum junk food pela região, andando pela Westphalen e parando bem em frente ao Cine São João (infelizmente hoje transformado em uma loja de departamento), nota que está em cartaz o filme de Scott. Não pensa duas vezes, compra sua entrada, mas pondera: meu filho nasceu e minha mulher está sozinha no hospital. Mas logo se tranquiliza, pois eu havia sido levado pelas enfermeiras e minha mãe demoraria a tarde toda para acordar. Entrou e assistiu ao filme que narra as aventuras de Rick Deckard, um caçador de androides em crise existencial (interpretado por Harrison Ford).

Alguns anos depois, eu já com cinco ou seis anos, passei pela sala e meu pai assistia a um filme escuro, com carros futuristas, com muita chuva e com o Capitão Solo (como eu me referi a Harrison Ford naquele momento). O velho me chamou, me pegou no colo e me contou a história do dia em que nasci, que ele assistiu no cinema àquele filme que naquele momento assistia em VHS no nosso primeiro vídeo-cassete. Naturalmente não me interessou assistir àquele filme naquele momento, com legendas, praticamente em PB, e assim os anos se passaram e conforme crescia, fui pegando gosto por cinema. Possivelmente graças à história contada tantas vezes.

Já adolescente, passei a aguardar o dia de meu aniversário principalmente para ouvir (era infalível!) meu pai contar a história do 18 de fevereiro de 1983, quando um jovem bancário de 32 anos foi ao cinema assistir Blade Runner enquanto a esposa descansava e seu filho recém-nascido dormia. Eu sempre escutava como se fosse a primeira vez. Sempre perguntava mais detalhes, se havia outros filmes em cartaz; perguntava sobre o tempo, sobre o que ele fez depois da sessão, se minha mãe ficou braba por ele ter ido ao cinema, etc. Sempre aparecia algum detalhe novo ou esquecido do ano anterior.

Em 2022, ao completar 39 anos, fizemos uma reunião singela só com companheira, pais, irmãos e vó. É claro que depois dos parabéns, sem eu pedir, olhando fixo para meu pai, como cúmplices de uma história protagonizada apenas por nós dois, me olhou e contou sobre uma manhã quente de fevereiro em 1983, quando foi assistir ao filme …

Essa foi a última vez que ouvi essa história. Depois da festinha de aniversário comentei com todos ali que no próximo ano faria uma festa de arromba pra comemorar meus 40 anos. Mais interessado do que na festa com música, show (tocaríamos com o Comanches nessa festa, a banda que temos em família), bebida e amigos, eu queria ouvir mais uma vez a história do dia 18 de fevereiro de 1983, quando um jovem de férias foi assistir Blade Runner no Cine São João enquanto a esposa descansava de uma cesariana e seu filho recém-nascido dormia.

Nesse 18 de fevereiro de 2023, exatos 40 anos depois, assisto Blade Runner para tentar emular uma jornada feita por meu pai, tal qual Ulisses voltando para Ítaca, tal qual Leopold Bloom retornando para sua Molly no fim do dia. Nesse dia não ouvirei a história do 18 de fevereiro de 1983 e terei que me acostumar com isso. Mais tarde vou ali em frente à Maternidade Nossa Senhora de Fátima e vou caminhar pela Visconde de Guarapuava até a Westphalen para prestar tributo ao meu Ulisses.

ESTRELA DIFUSA

  O tempo é o fator que talvez possa explicar melhor algumas coisas que simplesmente não escolhemos; ou melhor, insistimos em dizer que não ...