domingo, 22 de março de 2015

A fio – entre a academia e a poética do cotidiano


    (Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Janeiro 2015)
 
Os leitores de poesia estão cada vez mais restritos aos meios acadêmicos, salvo alguns grupos alternativos isolados, como o bom grupo Epopeia, de Curitiba. Há mais restrição ainda quando se trata da poesia produzida em Curitiba, pois o público curitibano é autofágico, além de o gênero poético não ser muito popular.

Em Curitiba há os clássicos medalhões que boa parte do público conhece (pelo menos os nomes) que fazem parte da cena local, como Helena Kolody, Paulo Leminski, Marcos Prado (mais comentado do que lido) e outros que fazem parte de antologias hoje só encontradas em sebos, como Rocha Pombo e Emiliano Perneta.

A poesia brasileira atual é bastante heterogênea, e em Curitiba não é diferente. Há um número bastante razoável de bons poetas na ativa, como Luiz Felipe Leprevost, Renato Vieira Ostrowski, Willian Tecca, Ivan Justen Santana, Álvaro Posselt, Luci Collin, Ricardo Pozzo, Otto Leopoldo Winck, Marcelo Sandmann e vários outros.

Dos poetas mais relevantes de sua geração, Marcelo Sandmann transita entre a academia e a música popular, entre o lirismo e uma espécie de pós-concretismo. Marcelo Sandmann nasceu em Curitiba, em 1963. Professor de literatura da UFPR, publicou Lírico renitente (Rio de Janeiro: 7Letras, 2000), Criptógrafo amador (Curitiba: Medusa, 2006), Na franja dos dias (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012) e A fio (Rio de Janeiro: 7Letras, 2014).

A fio é composto por 37 poemas e Sandmann transita entre versos livres, sonetos, alexandrinos, demonstrando domínio notável do fazer poético em formas diversas. Como domina com precisão a forma fixa, Sandmann provoca o leitor a forçar seu repertório poético e a desvendar seus meandros intrincados.

Há em boa parte dos poemas um flerte com o óbvio em que, em várias situações, lembra Drummond. Inclusive há algumas citações ao mestre de Itabira. No poema Orgulho da influência nota-se essa recorrência.

O poeta ideal?

Drummond,

Pelo crivo de Cabral.

(P. 33)

Há de se levar em consideração em vários poemas a preocupação com a metalinguagem, como no poema Menos que menos.

Menos,

Eu quero menos.

(Menos que menos.)

Das reticências,

um ponto

apenas.

Somente o mínimo, o ínfimo.

Talvez nem mesmo,

por exagero,

o pingo no

i.

(p.39)

No poema Elpenor Revisited (take 5) é interessante o encontro entre erudição e informalidade, o que aponta certo desapego com formas poéticas tradicionais. Sandmann assimila com propriedade rupturas com o tradicional tão presentes na chamada pós-modernidade, assim como no belo Última ceia, no qual há uma releitura do mito bíblico, o que também ocorre no poema Dois excertos bíblicos (primeira e segunda quedas).

Poeta extremamente relevante no cenário brasileiro atual, Marcelo Sandmann mostra ter domínio da técnica poética desde poemas mais elaborados, com formas fixas, a versos livres, mais leves que flertam com o óbvio do cotidiano.

Última ceia

E eis que algumas palavras

Saltam para fora

De um rio caudaloso e barrento

E estatelam-se na pedras

E ressecam ao sol

Peixes que salgo

Com o suor do meu rosto

Preparo

Reparto

Mastigo

Aqui com vocês

Nesta mesa comum

Ainda uma vez

Nossa última ceia.

(p.56)  

Nenhum comentário:

Postar um comentário

ESTRELA DIFUSA

  O tempo é o fator que talvez possa explicar melhor algumas coisas que simplesmente não escolhemos; ou melhor, insistimos em dizer que não ...