terça-feira, 21 de junho de 2022

OS CUS DE JUDAS E O PROGRESSO DA LEMBRANÇA*




O estilo de António Lobo Antunes em seus romances iniciais é bastante diferente do que fez posteriormente, principalmente nos romances escritos a partir dos anos 90. Todo o seu trabalho meticuloso com a memória permanece, mas é na linguagem que se diferenciam. Pode-se dizer que Lobo Antunes evoluiu esteticamente de obra para obra ao longo das décadas, mas a memória continuou sendo sua grande obsessão, seu leitmotiv.

Seus romances iniciais, principalmente os dois primeiros, se diferenciam muito pouco temática e esteticamente entre si. Memória de Elefante, escrito e publicado poucos meses antes de Os cus de Judas, em 1979, narra a história de um médico psiquiatra que retorna da guerra colonial em Angola sofrendo de graves crises existenciais e traumas complexos com os quais não consegue lidar. Os cus de Judas também narra a história de um médico psiquiatra que retorna da guerra colonial em Angola, que também sofre de crises existenciais graves das quais não pode se desvencilhar, mas já há, no segundo livro, um cuidado maior com a linguagem, a mudança de foco narrativo, os elementos exotópicos bakhtinianos de como ver o outro e a si próprio e, claro, um apuro maior com a questão do trabalho da memória do protagonista. Se em Memória de elefante há a presença embrionária da reprodução da memória histórica, em Os cus de Judas percebem-se elementos bastante próximos das teorizações do lembrar, tanto da memória histórica (porém não é o que predomina) quanto da memória espontânea e da memória aprendida.

O protagonista de Os cus de Judas passa uma noite inteira em um bar relatando suas lembranças mais diversas para uma estranha. Seu relato começa com uma lembrança da infância, muito mais distante, porém mais clara, mais viva, do que seus relatos da guerra colonial. É importante aqui considerar esses dois polos equidistantes: infância até a fase adulta (antes de partir para África) = memória espontânea; fase adulta (vai do período durante a guerra até seu retorno a Portugal) = memória aprendida. E claro, há o momento em que se lembra, ou seja, em que o trabalho da memória se concretiza no tempo presente, no qual todo funcionamento mnemônico é possível. O início de seu relato tem o objetivo de se referir a algo muito mais distante, mas menos doloroso e, consequentemente, mais fácil de ser concretizado, ou seja, de ser transformado em linguagem.


Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico era do rinque de patinação sob as árvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento em elipses vagarosas sem mover um músculo sequer, rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas, que, se falassem, possuíam seguramente vozes tão de gaze como as que nos aeroportos anunciam a partida dos aviões, sílabas de algodão que se dissolvem nos ouvidos à maneira de fins de rebuçado na concha da língua. Não sei se lhe parece idiota o que vou dizer mas aos domingos de manhã, quando nós lá íamos com meu pai, os bichos eram mais bichos, a solidão de esparguete da girafa assemelhava-se à de um Gulliver triste, e das lápides do cemitério dos cães subiam de tempos a tempos latidos aflitos de caniche (...) (ANTUNES, 2003, p. 7).


Enquanto sua narrativa vai avançando, as reminiscências de um passado não tão lírico nem tão facilmente recordado vão assumindo proporções maiores, porém sem organização cronológica. O único elemento cronológico do romance é o tempo presente, ou seja, é a noite em que o protagonista narra suas desventuras para uma desconhecida em uma bar. Vale ressaltar que conforme o tempo cronológico avança, o psicológico se movimenta livremente na consciência do protagonista, e é nesse movimento que não pode ser controlado, em que pode ser observada a outra memória descrita por Bergson, a memória aprendida, ou seja, ela é involuntária na maior parte do tempo, ainda mais quando situações de alarme, traumáticas, são lembradas. Que é o que ocorre com as lembranças do protagonista de seu período em Angola. Bergson afirma que "A questão é saber se a lembrança da dor era verdadeiramente dor na origem” (BERGSON, 1996, p.33), ou seja, as lembranças do protagonista de seu tempo como oficial do exército português na guerra colonial de fato foram dolorosas no momento em que ocorreram? Podemos afirmar com segurança que aquilo que é narrado pelo protagonista em uma noite de bebedeira foi tão dramático quanto parece ser durante seu processo de rememoração, pois seu sofrimento já começa antes de embarcar para África, com seu desencanto com o meio pequeno-burguês que o cerca e oprime e do qual faz parte; seu desencanto com a sociedade portuguesa como um todo, reacionária e retrógrada que não são compatíveis com seus anseios e desejos, tanto presentes quanto futuros.

É bastante curioso pensar em Salazar como um espectro onisciente que de fato moldará o pensamento pequeno-burguês de toda uma geração durante a guerra colonial. Claro que um dos motivos das lembranças do protagonista em relação à guerra serem tão profundas e doloridas, se deve ao fato de o protagonista ter lutado do lado errado, ou seja, ao lado do opressor. Em todo seu relato durante a noite, várias críticas são dirigidas a Portugal e à ditadura do Estado Novo como um todo, mas não é suficiente, por isso mesmo que sua dor era de fato sentida no momento do choque, do trauma.

Como vimos, o relato do protagonista pelo fato de não seguir uma estrutura cronológica, acontecimentos banais da infância ou da fase adulta no período da universidade, por exemplo, se misturam com os relatos da guerra, com cenas de mutilações, torturas e operações na selva de Angola. Bergson diz que a memória induzida, ou seja, aquela gama de lembranças provocadas propositalmente por quem lembra, pode seguir caminhos diversos, como um interesse, de fato, em relatar os acontecimentos passados por necessidade prática (talvez a escrita de uma autobiografia ou de algum relato sobre a guerra).

Levando em consideração as teorizações de Bakhtin sobre autor-pessoaautor-personagem, pois não se deve cair no erro de afirmar categoricamente, como vimos, que o relato do protagonista anônimo, que é médico psiquiatra que serviu no exército português durante a guerra colonial em Angola (assim como António Lobo Antunes) não é autobiografia. Por mais que Lobo Antunes se utilize de elementos autobiográficos e da metalinguagem, seu protagonista é outra entidade que não a sua própria, ou seja, faz parte do universo literário, ficcional que, mesmo tendo elementos correspondentes naquilo que se pode chamar de real, não faz parte dele. Afirma Bakhtin:


A própria linguagem literária – falada e escrita -, já sendo única não só por seus traços linguísticos abstratos, mas também pelas formas de assimilação desses elementos abstratos, é estratificada e heterodiscursiva em seu aspecto semântico-material concreto e expressivo (BAKHTIN, 2015, p. 63).


Philippe Lejeune, importante teórico da autobiografia, afirma que esse termo pode ser mal interpretado ou até mesmo ser ambíguo. Há de se levar em consideração a etimologia e também certos neologismos.


A invenção de uma nova palavra corresponde à tomada de consciência pela qual a palavra existente ("memórias") não é mais satisfatória. A palavra corresponde a um fenômeno radicalmente novo na história da civilização [...]: o costume de contar e publicar a história de sua própria personalidade. Como o diário íntimo, que aparece na mesma época, a autobiografia é um dos sinais da transformação da noção de pessoa e é intimamente ligado ao início do começo da civilização industrial e à chegada da burguesia ao poder (LEJEUNE, 1971, p.10).


É evidente que os elementos heterodiscursivos são levados em consideração em uma obra híbrida e difícil de ser classificada como a de Lobo Antunes, e é exatamente pelo fato de ser levado em consideração que podemos pensar que em sua própria existência histórica a linguagem é heterodiscursiva. Portanto, as armadilhas formais presentes em uma obra como Os cus de Judas e, também, Memória de elefante, podem ser atribuídas às intenções do autor, em alguns casos, e em outros ao próprio acaso.

As armadilhas deixadas por Lobo Antunes durante todo o livro têm o objetivo de deixar o leitor ainda mais à sombra, sem lhe entregar nada de graça. Os elementos reconhecidamente autobiográficos servem exatamente para isso, para lançar escuridão, nunca iluminar. Em outro fragmento do romance, quando o protagonista relata à mulher anônima do bar sua rotina ao chegar em casa todas as noites, pode-se notar certa alteração na precisão de seus relatos, ou seja, a memória induzida vai sendo substituída pela memória aprendida.


Cá estamos. Não. Não bebi demais mas engano-me sempre na chave, talvez por dificuldade em aceitar que este prédio seja o meu e aquela varanda lá em cima, às escuras, o andar onde moro. Sinto-me, sabe como é, como os cães que farejam intrigados o odor da própria urina na árvore que acabaram de deixar, e acontece-me permanecer aqui alguns minutos, surpreendido e incrédulo, entre as caixas de correio e o elevador, procurando em vão um sinal meu, uma pegada, um cheiro, uma peça de roupa, um objecto, na atmosfera vazia do vestíbulo, cuja nudez silenciosa e neutra me desarma. Se abro o meu cacifo não encontro nunca uma carta, um prospecto, um simples papel com o meu nome que me prove que existo, que habito, que de certa maneira este lugar me pertence (ANTUNES, 2003, p. 142).


O encontrar-se consigo próprio ou a tentativa (necessidade?) de encontrar-se consigo próprio é uma situação dramática, uma situação de alarme. Principalmente porque o protagonista, ao retornar da guerra em Angola, deixou de existir. O psiquiatra, quando retorna, perde a família e com isso a convivência diária com as filhas, o que acarreta uma série de outros conflitos pessoais e profissionais. Esse turbilhão de acontecimentos não esperados são fundamentais para o protagonista substituir, sem perceber, pois é a memória aprendida que age, o presente real por um passado idealizado.

Como boa parte de seu relato é formado por um discurso obscuro e brumoso, muito por causa da mudança progressiva que o protagonista vai sofrendo por decorrência do álcool, as reminiscências e lembranças, em alguns momentos, são substituídas por delírios.


(...) continuo a pensar-me sozinho na noite destas praças, destas melancólicas avenidas sem grandeza, destas transversais secundárias como afluentes, arrastando consigo capelistas suburbanas e cabeleireiros decrépitos, Salão Nelinha, Salão Pereira, Salão Pérola do Faial, com penteados de revistas de modas colados ao vidro das janelas. Em casa, a alcatifa bebe o som dos meus passos reduzindo-me ao eco tênue de uma sombra, e tenho a impressão, ao barbear-me, que quando a lâmina me retirar das bochechas as suíças de Pai-Natal mentoladas de espuma, apenas ficarão de mim as órbitas a boiarem, suspensas, no espelho, indagando ansiosamente pelo corpo que perderam (ANTUNES, 2003, p. 134).


O tom delirante assumido por Lobo Antunes em vários momentos de Os cus de Judas, como se o protagonista vivesse em um pesadelo do qual não consegue acordar e é atormentado por lembranças o tempo todo, passa a ser o que o guia em seus solilóquios intermináveis. Há de se levar em consideração que ele narra sua história a alguém, mas a mulher que o ouve e no final vai com ele para seu apartamento, em momento algum ganha voz. O pouco que sabemos sobre a mulher que se resigna a lhe escutar são impressões breves não muito específicas.


Espere aí, vou acompanhá-la à porta. Desculpe o tempo que demoro a levantar-me, e, em vez de má educação, peço-lhe que veja nisso apenas o lamentável resultado do excesso de uísque, da noite sem sono, e da emoção do meu longo relato que está chegando ao fim. Aliás, amanheceu: ouvem-se distintamente as camionetas das obras na rua, um autoclismo qualquer, no andar de cima, anuncia o despertar dos vizinhos. Tudo é real agora: os móveis, as paredes, o nosso cansaço, a cidade demasiado cheia de monumentos e de gente como uma cómoda com muitos bibelots no tampo, que amorosamente odeio. Tudo é real: passo a mão pela cara e a lixa da barba por fazer arrepela-me a pele, a bexiga repleta incha-me a barriga o seu líquido morno, pesada como um feto redondo que geme (ANTUNES, 2003, p. 234).


Esse fragmento deixa bem claro que o tom assumido pelo protagonista é de um desabafo melancólico, no qual há uma espécie de desistência de buscar, ou de tentar buscar, mudanças no presente, já que o trauma é irreparável. Aliado ao trauma da guerra está a dificuldade de suas relações pessoais, principalmente com suas filhas e ex-esposa. Percebe-se a desistência de encontrar sentido para sua vida quando ele assume que o agora é real, ou seja, se só o agora é real, aquilo que faz parte do passado e só é possível chegar a ele através da memória, seja ela qual for, não o é. Tratar os traumas e marcas do passado como acontecimentos abstratos e inventados é parte da negação na qual está inserido intensamente. O que o faz sofrer ainda mais e seu drama ser ainda mais intenso é o fato de que ele percebe sua negação, mas através de uma realidade paralela, superficial, e assim tenta, sem sucesso, superar sua crise.


Tudo é real, sobretudo a agonia, o enjoo do álcool, a dor de cabeça a apertar-me a nuca com o seu alicate tenaz, os gestos lentificados por um torpor de aquário, que me prolonga os braços em dedos de vidro, difíceis como as pinças de uma prótese por afinar. Tudo é real menos a guerra que não existiu nunca: jamais houve colónias, nem fascismo, nem Salazar, nem Tarrafal, nem PIDE, nem revolução, jamais houve, compreende, nada, os calendários deste país imobilizaram-se há tanto tempo que nos esquecemos deles, marços e abris sem significado apodrecem em folhas de papel pelas paredes, com os domingos a vermelho à esquerda numa coluna inútil, Luanda é uma cidade inventada de que me despeço, e, na Mutamba, pessoas inventadas tomam autocarros inventados para locais inventados, onde o MPLA subtilmente insinua comissários políticos inventados (ANTUNES, 2003, p. 237 - 238).


Reparemos que aquilo que o protagonista afirma ser real é anterior ou posterior à guerra em Angola, e o período que esteve no continente africanovinte e sete meses, faz parte de uma sombra, um pesadelo difícil de acordar. Os quase três anos que o médico passou em Angola são sua maior fonte de sofrimento que, constantemente, ajudam a anular seu presente como algo promissor tornando seu futuro bastante incerto, envolto em uma névoa de dúvida, negação e sombras. Na tentativa de superar seus traumas, mesmo não admitindo em seu relato, o médico busca através dos malabarismos mnemônicos que tece, principalmente quando admite estar escrevendo o que narra, tornar a fonte (ou as fontes) de seu sofrimento menos abstrata através de um conceito abstrato, que é a memória.


*Texto adaptado da dissertação de mestrado O pesadelo pós-colonial: identidade e memória na narrativa de António Lobo Antunes, de Daniel Osiecki, defendida em 2018.

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