segunda-feira, 8 de agosto de 2022

RÉQUIEM PARA DÓRIS

 

Cachorra Baleia Espreguiçando - Marco de Sertânia



Não são raras as aparições de cães na literatura. Uma das representações mais tocantes é o incrível Argos, o cão de Ulisses, da Odisseia de Homero, que aguarda seu dono por 20 anos. Ulisses, ao voltar da guerra de Troia, ao chegar em casa encontra seu cão abandonado em um monte de estrume de vaca. O cão, que o esperou durante toda sua ausência, o reconhece quando seu dono se aproxima e, como tendo cumprido sua missão, mexe as orelhas, abana sua cauda e morre.
Outros tantos cães na literatura são icônicos, como o machadiano Quincas, que herda o nome e os olhos do dono e depois de sua morte continua com alguns trejeitos do dono morto, e Baleia, a doce e forte cadelinha de Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
Baleia está presente em todo o périplo pelo qual a família de Fabiano passa,  e assume papel de muita relevância na narrativa. Tem, inclusive, voz em um capítulo em que sonha que anda livremente em um paraíso de preás. Cena lírica e tocante que é uma espécie de válvula de escape na aridez do romance. Lírica também como foi sua morte, mas isso deixo para o leitor e para a leitora que ainda não se embrenharam pela obra-prima de Graciliano.
Poderia citar ainda outros tantos exemplos, como a Kashtanka, de Tchekhov, ou o Olho de Boi, de Dickens (Oliver Twist) e segue a lista, mas outro cão que foi importante demais foi Dóris, que fez parte de minha vida de agosto de 2008 (com pouco mais de um mês de idade) até ontem, quando morreu aos 14 anos.
Dóris recebeu seu nome (ideia de meu irmão) graças ao icônico e lisérgico ônibus que transporta a banda fictícia Stillwater, no filme Quase Famosos (2000). Quando a trouxemos para presentear minha mãe por seu aniversário, Dóris cabia em uma sacola minúscula, e exigia cuidados extremos na alimentação e todo o resto, pois era muito nova e frágil. 
Curiosamente quando a trouxemos, eu lia naquela tarde o romance de Saramago, A viagem do elefante, que também tem sua ação girando em torno de um animal. Dóris me fez companhia em tantas noites de leitura, estudos e escrita.
A questão com todas essas personagens literárias e Dóris é pra mostrar o quão poético pode ser a relação do humano com um animal, nesse caso com um cão. Sempre quando retornava à casa de meus pais, Dóris, tal qual Argos aguardando Ulisses, vinha me receber com afeto e efusão; tal qual Argos abanava a cauda e como Baleia gania e chorava alegre por me ver.
Dóris cumpriu seu papel com maestria e fidelidade inabaláveis. Fará falta.   

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