sexta-feira, 18 de abril de 2014

O Proust das araucárias



                        (Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Abril de 2014)


Há muito tempo ouço o nome Jamil Snege e o associo a uma Curitiba não descoberta. É como se Jamil Snege fosse algum tipo de entidade atemporal e intocável que muita gente comenta, mas poucos leram. Mais ou menos como Proust. Salvo distanciamentos óbvios, o nosso Proust, o das araucárias, faz jus aos diversos comentários e elogios de escritores e leitores do “turco”. Snege é cultuado em um circuito literário bastante restrito, tendo influenciado toda uma geração de escritores como Fábio Campana, Cristovão Tezza, Miguel Sanches Neto, Joca Reiners Terron e vários outros.

Meu primeiro contato com a obra de Snege foi um tanto tardia, por volta de 2006, no final da graduação. Fiz um curso sobre ficcionistas paranaenses contemporâneos e no programa de leitura estava Como eu se fiz por si mesmo, de 1994. Deliciei-me em uma noite (com uma fotocópia) com esse relato franco, escrachado, de um humor fino e ácido, sobre as agruras e peripécias de um escritor praticamente desconhecido em uma Curitiba apática, “mãe que nos engendra e nos devora, nos inventa e nos esquece”...

Desde o longínquo primeiro contato com a obra de Snege, através de uma fotocópia que já se perdeu com o tempo, não tive muitas chances de ler sua obra por falta de exemplares disponíveis. As obras estão esgotadas há muito e o que se encontra em sebo, quando se tem sorte, é muito caro.

Há pouco mais de um mês passei pela livraria Arte e Letra e, desses acasos da vida, me deparei com algumas obras de Jamil Snege à venda. A primeira sensação foi de estranhamento (até cocei os olhos para ter certeza do que estava vendo) e realmente os livros estavam dispostos em uma mesa e disponíveis para quem quisesse comprá-los. Naturalmente o valor estava bastante alto, cerca de R$50,00 cada exemplar, o que não é tão caro comparado a valores cobrados em sebos e em livrarias virtuais. Diante de minha visível perplexidade, o solícito proprietário da livraria explicou que a família de Snege havia disponibilizado cerca de 500 exemplares de seu próprio acervo para a venda. Ideia brilhante. Dias depois as obras já estavam esgotadas, mais uma vez.

Saí da livraria com os livros O jardim, a tempestade (1989); Viver é prejudicial à saúde (1998); Como tornar-se invisível em Curitiba (2000) e com um sorriso de satisfação. Li demoradamente cada um dos livros. Não quis ler avidamente pois sabia que não encontraria outras obras de Snege tão fácil. Viver é prejudicial à saúde me encantou desde as primeiras linhas. Incrível o poder de concisão de Snege nessa novela que narra o cotidiano sem graça e vazio de um arquiteto em fim de carreira. O jardim, a tempestade já revela um Snege lírico que flerta com a prosa poética em narrativas curtas.

Como tornar-se invisível em Curitiba é uma coletânea de crônicas publicadas na Gazeta do Povo e em outros periódicos de Curitiba. As crônicas do volume são verdadeiros tratados sobre assuntos dos mais variados, desde fim de relacionamentos problemáticos à apatia intelectual e artística da cidade. É recorrente nas crônicas de Snege críticas nada veladas à classe média sem conhecimento e alheia a tudo que acontece na “província”. Em uma das crônicas mais relevantes do livro, “A arte de tocar piano de borracha”, Snege escreve:

A historinha retrata com alguma maldade a nossa velha Curitiba de guerra. Um piano de borracha à sombra dos pinheirais. Se você quiser tocar, pode. Mas não vá exigir que alguém escute. Ninguém viu, ninguém ouviu e quem ouviu fingiu que não viu. (p.73)

É como se sentia Snege. Não foi por falta de oportunidade que o velho Jamil não publicou seus livros por grandes editoras. Foi pura resistência, seu modo de protestar contra a ignorância, apatia e obtusidade de uma cidade que amava.   
 

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