domingo, 17 de novembro de 2013

LITURGIA DO SANGUE: UIVOS ATÁVICOS


 
      (Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Novembro 2013)
 
Vários teóricos de vertentes literárias das mais variadas já se ocuparam com a questão do espaço na literatura. Nomes como Walter Benjamin, Bakhtin, Alfredo Bosi, Umberto Eco, etc., em algum momento de suas produções ensaísticas dedicaram considerações acerca da representação do espaço em narrativas, principalmente nos gêneros conto e romance.

Há de se levar em consideração as formas dos dois gêneros narrativos, ou seja, a construção de uma estrutura espacial mais sólida e consistente é mais viável na narrativa mais longa. O romance, por ser formado a partir de núcleos espaciais mais abrangentes, naturalmente as opções de espaços são bastante diversas, o que contribui para uma oscilação menor em seu núcleo estrutural.

Já o conto tende a ser mais direto, sem floreios estilísticos muito complicados que talvez fossem melhor realizados em narrativas mais longas. Porém, vários autores romperam algumas barreiras com essas formas tradicionais de construção espacial nas narrativas mais curtas, como Machado de Assis, que escreveu verdadeiros tratados sociológicos sobre a sociedade carioca do século XIX através do conto; Vergílio Ferreira, grande escritor português do século XX, talvez o maior romancista de língua portuguesa, inovou o gênero romance em Portugal introduzindo elementos do ensaio e de tratados filosóficos nas narrativas de ficção, tanto no conto quanto no romance.

Em Curitiba (pelo menos na Curitiba underground) há alguns escritores que vêm trabalhando seus contos a partir desse aspecto não tradicional, o mais original é ReNato Bittencourt Gomes. ReNato (seu nome é grafado dessa forma), nasceu em Telêmaco Borba em 1967 mas vive em Curitiba. É professor, revisor e Mestre em Estudos Literários pela UFPR. É autor de Mecânica dos fluidos (2002), Liturgia do Sangue (2009) e Inventário e Descobrimentos (2010).

Seu melhor trabalho sem dúvida é Liturgia do Sangue: a memória do lobo. O livro é dividido em quatro partes: a tribo, os ofícios, as lobas e o clã. Ao todo são vinte contos que compõem a obra, e um dos aspectos mais interessantes é que aparentemente não há nenhuma história sendo contada. Os contos são verdadeiros flashes de um anônimo que assume estar escrevendo algo. A metalinguagem é assumida abertamente em várias passagens ao longo do livro, tendo ou não alguma ligação entre si.

Bittencourt usa vários símbolos em todos os contos, e vários desses símbolos reaparecem em contos posteriores. Um dos símbolos mais significativos é a figura do lobo, de sua aproximação com a condição humana. O indivíduo não passa de um animal acuado preso em seu próprio meio e age instintivamente. Outro símbolo importante a ser levado em consideração como um elemento estrutural e conectivo entre os contos é a presença do uivo, muito semelhante à náusea sartreana e que depende do outro para ser silenciado. O “uivo” é visceral e geralmente parte de situações limite, de alarme.

Além da presença do “uivo” atávico durante várias partes do livro há repetidas referências à “tribo”, que rege preceitos imutáveis, como regras de conduta, preceitos morais e códigos sociais bastante característicos. E como o uivo é atávico, como uma herança muitas vezes não desejada, gera um conflito existencial forte no indivíduo que é elemento integrante da “tribo”.

No conto Liame (e em vários outros) não há ações convencionais. Há reflexões sobre o ser humano, sobre a miséria de sua condição animal. A animalização do homem é recorrente na maioria dos contos. Há um belo trabalho formal nesse conto, o que mostra um autor que domina a técnica narrativa como poucos.

Em Filhos da Lei, um dos melhores textos do livro, o narrador se dirige diretamente ao leitor. Suas ações são (como é comum no livro todo) solilóquios intermináveis e impenetráveis. Não há nenhuma espécie de interrupção exterior ao seu discurso e novamente a metalinguagem serve como elemento fundamental para o fazer literário, para a construção narrativa.

No belo Liturgia, Bittencourt se utiliza da prosa poética com precisão, principalmente em cenas que sugerem (muitas ações são apenas sugeridas) atos sexuais. Seu estilo narrativo é propício para a prática de uma prosa poética fluente, nada é forçado ou artificial nos contos, o que contribui para uma leitura que flui, apesar do rigor que exige do leitor. 

É interessante ressaltar que mesmo o autor não contando uma história nos moldes tradicionais, propositalmente há uma espécie de “voz” que perpassa todo o livro, como se fosse o alter-ego de Bittencourt que clama por sentido em um ambiente caótico e nonsense. É como se o mesmo narrador autodiegético narrasse todos os contos como se fossem pequenas impressões do que aponta e vê.

No conto Minhas palavras, tua flor carnívora, há a presença da ideia sartreana de encontrar-se consigo próprio, encontrar-se com o absurdo de ser aquilo que se é.

Sou o lobo do canivete, como meu pai e antes dele meu avô e antes... (p.117)

Em todo Liturgia de sangue: a memória do lobo há lacunas deixadas por Bittencourt para serem desvendadas e degustadas pelo leitor atento. Deve-se estar atento aos meandros poéticos durante toda leitura. O livro não apresenta oscilações estruturais em sua forma nem em seu conteúdo. Sua relevância unitária é significativa, o que é fato incomum em coletâneas de contos, pois dificilmente essas coletâneas são inteiramente boas e relevantes por não apresentarem, muitas vezes, essa homogeneidade estilística construída por Bittencourt. Livro forte que dificilmente será superado por algum outro escritor brasileiro contemporâneo.

 

 

 

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