domingo, 25 de novembro de 2012

QUADROS DA MINHA VIDA: UM ENSAIO AUTOBIOGRÁFICO



A vida pessoal daqueles que admiramos exerce certo fascínio sobre nós. É um dos motivos pelos quais lemos biografias. Há grandes biografias de grandes figuras que me marcaram muito. Uma delas é O bandido que sabia latim, biografia de Paulo Leminski, de Toninho Vaz. Texto limpo, apurado e denso. Há também o belo Ser e ler Torga, biografia de Miguel Torga, de Fernão de Magalhães Gonçalves.

Esses dois livros em particular me marcaram muito, pois sou leitor voraz de Leminski e Torga, mas nada como ter em mãos a biografia de um mestre no sentido mais puro da palavra. Me refiro ao livro Quadros da minha vida: um ensaio autobiográfico (2011, Editora Champagnat, 283 p.), de Jayme Ferreira Bueno.

Conheci o Professor Jayme em 2004 durante a graduação em Letras, na PUCPR. Logo de início simpatizei com a figura serena, tranquila e intimidante do mestre, que havia sido orientado, na USP, por ninguém menos que Massaud Moisés, uma celebridade nos cursos de Letras Brasil afora. Prof. Jayme e eu conversamos sobre o Romantismo português, mais especificamente sobre Garret e Herculano, que seriam as primeiras leituras que faríamos.

Conforme o tempo passava, fui amadurecendo minhas ideias e o Professor Jayme sempre deixou sua biblioteca à disposição, e data deste período minha incursão pelo neorrealismo. Conheci Miguel Torga, Alves Redol, Manuel da Fonseca, Ferreira de Castro, Fernando Namora pelos livros que o professor me emprestava. Normalmente um por semana. Lia tudo e tentava absorver tudo aquilo em um período bastante prolífico de minha vida, e para minha sorte essa empatia acadêmica se estendeu ao âmbito pessoal. Mantemos até hoje um relacionamento de amizade. Quando pego algum material emprestado com o mestre gosto de pensar que ainda somos professor e aluno, que terei algum seminário para apresentar ou algo do gênero. Talvez para tentar enganar a passagem do tempo e manter no presente algo que me foi tão importante no passado.

O Professor Jayme Ferreira Bueno lecionou na PUCPR durante 37 anos. Exerceu cargos diversos  além de professor de Literatura Portuguesa. No livro Quadros da minha vida: um ensaio autobiográfico, professor Jayme relembra toda sua trajetória pessoal e profissional. Desde sua saída de Castro, no interior do Paraná, até suas andanças pela Europa.

O texto deste ensaio autobiográfico é bastante lírico, o que não é de surpreender, dado sua proximidade com a poesia portuguesa. Professor Jayme traça um belo perfil de sua infância no interior, com referências geográficas precisas. Toda sua narrativa é construída à luz de fatos aliados a um lirismo raro. Professor Jayme tem uma forte verve poética que é facilmente perceptível pelo leitor.

Quando o mestre Jayme me deu o livro fiquei satisfeito por ele, contente por ele, pois tinha a certeza, mesmo antes de ler, que era um trabalho guiado pela emoção e de extrema competência estilística. Satisfeito também por conhecer um pouco mais certas particularidades do mestre que não conhecia muito bem. Foi com grande prazer e, por que não?, com algum orgulho, que recebi o belo presente, pois o livro foi entregue a amigos, colegas de trabalho mais próximos e familiares, ou seja, de certa forma faço parte de um grupo seleto. Para o leitor ter uma breve noção do forte lirismo de Quadros da minha vida, transcrevo o primeiro parágrafo. Contemplem e deleitem-se. Evoé!

Pela manhã ventosa de inverno nos campos da Taquara, galopava uma mulher destemida. Na brancura da geada cobrindo grama e congelando as águas de lajeados, a campeira ao lado de seus peões iniciava a faina da fazenda. Trabalharia duro até o sol começar a decair no horizonte. O gado precisava ser reunido, alimentado, controlado, para que depois ficasse solto pelos capões de mato para um breve descanso antes de ser recolhido aos redis.   

Um comentário:

  1. Daniel,
    Fernando Pessoa naquele seu complexo modo de pensar e de escrever dizia sobre a amizade por intermédio do seu heterônimo Álvaro de Campos: “Sou demasiado amigo de Fernando Pessoa para dizer bem dele sem me sentir mal: a verdade é uma das piores hipocrisias a que a amizade obriga.”
    Aquela relação ficcional entre o poeta e seus heterônimos levava a pensamentos como esse. De fato, não é fáci
    l falar de um amigo, mesmo que a isso sejamos obrigados pela própria amizade. Tudo que se disser pode levar a pensar, que foi dito pela amizade, quando na realidade foi dito por imperioso dever de cultivar e de respeitar uma amizade. É assim que eu entendo o seu texto e é assim que eu quero que todos entendam esta minha escrita.
    Vieira, disse que “O melhor retrato de cada um é aquilo que escreve.” E assim de fato é. Nós nunca nos revelamos tanto como quando escrevemos. Tudo o que um autor escreve, mesmo que “finja” sempre, ele sempre escreverá o que tem dentro de si. Sei que me irão taxar de biografista, ou seja, de crítico realista, que tinha como medida do seu julgamento a relação homem/escrita. Não é isso. Mais uma vez é Fernando Pessoa que nos vem em socorro, quando afirma: “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente.”
    Mesmo José Régio, ao defender a poesia sincera, acaba por cair no fingimento. No soneto Demasiado Humano, conclui-o com estes versos: “Que eu vivo a expor minh’alma nas estradas, / com chagas inventadas retocadas... / para esconder bem fundo as verdadeiras.”

    O que é expor as chagas inventadas e esconder as verdadeiras? Não é uma forma de fingimento? Quer queiramos ou não fingir, ou queiramos ou não ser sinceros, afinal, nós somos o que somos, e isso deixamos transparecer quando escrevemos.
    Todo este intricado raciocínio para que sejamos autênticos quando falamos de amizade. Não é muito comum tornar-se amigo de professor. Antigamente, os professores eram deuses a quem os alunos jamais teriam acesso. Mantinha-se o “respeito”, mantendo-se a distância. Havia uma relação de subalternidade do aluno em relação ao professor.
    Hoje, infelizmente, perdeu-se o respeito ao professor, e uma relação assim dificilmente permitirá o nascimento de amizade entre o professor e o aluno. Em todo caso, como já afirmavam os antigos in medio virtus. E foi com esse lema de que é no meio termo que se encontra a virtude, que eu procurei levar à frente o meu modo de ser professor. Ser professor quando necessário, e ser amigo, quando sentia haver reciprocidade. Talvez isso tenha sido o que me fez permanecer cinquenta anos no magistério, trinta e sete só no ensino superior. Foi uma vida, mas, confesso, valeu a pena.
    Valeu a pena por tudo o que aconteceu nessa longa trajetória, mas valeu a pena, principalmente, pelas muitas amizades que eu consegui. E a sua, Daniel, é exemplo de todas as outras, porque, além de tudo, você tem a grandeza de expressá-la, em vários textos que escreve.
    E se confirma a citação já feita: “O melhor retrato de cada um é aquilo que escreve.” E nós somos o que escrevemos.
    Um grande abraço com o agradecimento pelo texto e principalmente pela amizade."

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