(Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Outubro 2014)
É surpreendente a
quantidade de contistas novos que tem publicado em Curitiba nos últimos anos.
Tenho me ocupado nesta coluna em resenhar vários desses autores, como Renato
Bettencourt Gomes, Renato Ostrowski, Homero Gomes, Rui Werneck de Capistrano,
Severo Brudzinski e sem contar, claro, os mais que consagrados Jamil Snege e
Dalton Trevisan.
Verdadeiro celeiro de
grandes contistas, Curitiba é um espaço literário bastante prolífico àqueles que
buscam seguir os passos do grande mestre Trevisan. Mas como já afirmei em texto
anterior, há vida inteligente em Curitiba depois de Dalton, Leminski e Tezza.
Mais um desses novos autores de nossas paragens que descubro é Severo
Brudzinski.
Severo Brudzinski
nasceu em Curitiba em 1973. É graduado em Direção Teatral pela FAP. Publicou os
livros Os amores e mortes de Gustavo
Carbel (2005), Líricas (2008)
pela Stultifera Navis e Passagem do
Aqueronte (2012) pela Kafka. Coletânea de contos bastante singular, Passagem do Aqueronte transita entre o
onírico, o imaginado e o delírio, formando um corpus narrativo coeso e muito
bem estruturado.
O pequeno volume é
composto por onze contos e todos os textos são interligados por um único
elemento, a autocitação. Em todos os contos Severo é o protagonista de
situações diversas, porém todas envoltas a uma atmosfera labiríntica e nonsense. O primeiro conto, Tabacaria, é uma clara alusão ao famoso
poema de Fernando Pessoa.
Os pedestres dissimulam
os olhos sob os óculos escuros, ocultam os rostos nas golas levantadas dos
sobretudos e sob chapéus negros, escondem as cabeças. Um deles para diante da
porta de aço do botequim e entra sem pedir licença.
Você é o Esteves sem
metafísica? Quer saber o homem que traz sobre o rosto uma máscara de malha
branca com um buraco na boca.
(p.8)
O Severo protagonista
de Tabacaria está em um bar, e sua
atmosfera soturna se contrapõe à atmosfera da rua que é clara, repleta de vida
e de pessoas. Há aqui um embaralhamento de tempos físico e psicológico, Severo
mistura passado, presente, realidade e sonho em um único plano. Talvez haja
aqui a influência do álcool sobre o protagonista que não tem controle daquilo
que vê ou sente.
Outro conto que merece
destaque é Cama do Céu, Cama do Inferno,
que descreve, no início, uma relação sexual com minúcias. Até aqui todos os
contos começam, geralmente, simulando narrativas convencionais e depois assumem
aspectos mais sombrios, oníricos e noir.
As ações não são claras, nunca se sabe de fato o que está acontecendo.
No conto seguinte, Nas fossas, Brudzinski faz uma breve
incursão no microconto, que relata um campo de batalha. Como é recorrente no
livro todo, toda ação é sugerida. A ação transcorre em meio a uma névoa obscura
de seres decadentes e melancólicos, fato que também é perceptível no conto que
dá título ao livro, Passagem do
Aqueronte. Severo constrói nesse texto imagens surreais nas quais o absurdo
assume proporções consideráveis. Tzvetan Todorov chama essa dualidade entre o
fantástico e o real de fantástico-maravilhoso, que é quando elementos
sobrenaturais são aceitos no universo da realidade e o irreal vive em harmonia
com o real.
As ações vão se
sucedendo de forma vertiginosa e consequentemente ficando mais obscuras. Há o
predomínio total da sugestão sobre a ação. É sonho? Ilusão? Devaneio? Em alguns
momentos a insistência em soar nonsense
se torna um tanto exagerado e enfadonho, mas há mais acertos do que erros.
Severo Brudzinski, o
autor do livro, não o personagem, deixa o melhor conto para o final, A praça. Nesse texto Brudzinski se
utiliza de um artifício que faz com que o conto de fato seja o melhor do livro,
a metalinguagem. Nesse conto há a desconstrução da estrutura estanque da
narrativa convencional. Ao se incluir em um texto, o personagem automaticamente
transforma a narrativa em metaliteratura.
Quanto tempo levou?
Não sei...Alguns dias.
Talvez anos. Sei lá, uma vida inteira. Um momento. Quem sabe?
E por que ela nos
observa o tempo todo?
Quem?
Essa pessoa que está
lendo o livro com as mãos suadas.
Ela é nossa testemunha.
(p.109)
A seguir Brudzinski
tece algumas considerações bastante pertinentes sobre o fazer artístico como um
todo.
Mas por que sob os
olhos dela? Tudo isto é muito estranho. Só aqui, sob o olhar de pessoas como
essa é que temos existência. Só aqui nesta praça, neste jardim secreto. Cada
vez que olhos curiosos percorrem as linhas dessas frases, nós viveremos.
(p.110)
É uma ótima visão sobre
o ato de escrever e sua finalidade (se há alguma). A literatura só existe de
fato quando é lida, observada, ouvida. Severo Brudzinski encerra seu Passagem do Aqueronte com saldo
positivo. Livro coeso e bem estruturado, o volume mantém sua qualidade em todos
os contos.