Era-lhes fácil achar-se
na sociedade; o difícil era, para eles, perder-se nela, sumir.
Walter Benjamin
Na mitologia grega o centauro surge como um ser híbrido, ambivalente,
principalmente pelo fato do significado da palavra centauro [1],
que permite algumas considerações. Primeiramente, há de se levar em
consideração o mais célebre dos centauros, Quíron, filho de Filira e Cronos, que simbolizava a força aliada à bondade
e à inteligência. Isso já mostra a dicotomia desse ser fantástico, sem falar de
sua aparência, metade homem, metade cavalo. Em O
Centauro no Jardim, obra-prima de Moacyr Scliar (1980), seu protagonista,
Guedali, toca violino, alusão também à figura do célebre centauro da
antiguidade. Há nessa descrição um misto de sacro (a imagem do violino, música)
com o grotesco (a imagem do próprio Guedali, a fera, anomalia).
Segundo René
Ménard, no livro Mitologia Greco-Romana (1991),
os centauros eram seres que personificavam as forças desenfreadas da natureza,
simbolizando a fúria, a devassidão e a embriaguez. As histórias de centauros da
antiguidade estão quase sempre ligadas à barbárie. Segundo a lenda, os
centauros foram convidados para o casamento de Pirítoo [2]
e nessa ocasião, por consequência da embriaguez pelo vinho, os centauros tentam
raptar a noiva, fato que desencadeia uma batalha sangrenta e a expulsão dos
centauros da Tessália [3].
O
surgimento do mito do centauro não tem uma história certa, há várias hipóteses.
A mais conhecida delas é associada aos vaqueiros habitantes das montanhas da
Tessália. Explica Ménard:
Os
montanheses da Tessália, da época pelásgica, já eram excelentes cavaleiros
quando o uso de montar a cavalo não era conhecido no resto da Grécia. Foram
considerados pelos vizinhos espantados como monstros, e por gostarem de vinho,
as lendas mitológicas os classificaram imediatamente no cortejo de Baco
(MÉNARD, 1991, p. 139. V. 3).
Surge aí o mito, pois a
palavra centauro significa matador de touros, ideia associada à prática dos
vaqueiros. E o significado do mito é exatamente esse, explicar por meio de
narrativas com cunho fantástico ou sagrado, as ações dos homens na terra. Os
mitos eram muito comuns na antiguidade, serviam como uma necessidade de
segurança, de impôr à população, através do medo, respeito ou veneração, a
ideologia dominate, seja religiosa, política ou filosófica.
No
romance de Scliar, Guedali muitas vezes se questiona sobre sua origem. Através de suas
pesquisas o herói passa a procurar seres como ele, semelhantes seus que de
alguma forma o ajudem a encontrar respostas ou um significado para sua
existência. Um dos símbolos mais significativos no romance é exatamente a
incompreensão de Guedali com ralação a si próprio, como ser ambivalente que é,
e isso remete claramente à imagem dos centauros da antiguidade como seres
bárbaros, pois a sua incompreensão o leva a cometer um ato de barbárie. Há uma
passagem do romance que mostra bem esse fato, quando Guedali, movido por um
sentimento de culpa, chega a se autopunir.
De
madrugada, tento me matar. Sozinho no
porão, extraio de uma tábua podre um grande prego. Golpeio-me repetidamente o
dorso, o ventre, as patas, o peito, mordendo os lábios para não gritar. O
sangue brota, não paro, continuo a me ferir (SCLIAR, 1980, p. 35 e p. 36).
Esse ato
brutal de Guedali serve como uma metáfora sobre a condição mitológica dos
centauros da Tessália, seres considerados brutais e promíscuos. Porém, em
contrapartida, há um outro símbolo muito relevante no romance, que é a alusão
de Guedali ao centauro Quíron. O centauro Quíron é um caso raro de sua espécie,
pois ao contrário de seus ancestrais, guerreiros promíscuos e bárbaros, foi
professor e instrutor de Aquiles, Heráclito e Jasão, possuidor de vasta
cultura, conhecimento e bondade.
Assim
como Quíron, Guedali é um ser também possuidor de certo conhecimento, saber e
de bondade. Fato que o aproxima e o distancia do centauro Quíron, pois ao mesmo
tempo em que Guedali
é uma metáfora e uma alusão a Quíron, personifica a alienação de toda uma
classe. Guedali carrega as atribuições de seu ancestral, porém pende mais para
o lado do grotesco e suas ações o levam a cometer erros. Portanto, Guedali
incorpora, numa sutil metáfora no romance, a dupla personalidade dos seres
mitológicos dos quais descende, a brutalidade dos guerreiros e a bondade e
inteligência de Quíron.
A
odisséia de Guedali nada mais é do que a tentativa de realizar o seu momento de
epifania, de realizar um encontro consigo mesmo, de teor cultural, religioso e
metafísico. No livro Tempo e Poesia, Eduardo
Lourenço reflete sobre essa temática do encontro, que para ele é inevitável, do
homem com o mito e consigo próprio. Relata Lourenço;
Em face
da sua imagem ou da sua sombra, o homem realiza um dia o encontro decisivo com
os seus limites (...) A aventura é impossível pois a imagem e a sombra são
reais. Isso significa que um mundo nos cerca, nos divide e nos limita (1974, p. 27).
Eduardo
Lourenço intitula o primeiro capítulo deste livro de “Poética Mítica”, no qual
reflete sobre a origem do mito e sua influência sobre o homem. Pode-se aplicar
a idéia principal deste fragmento às desventuras de Guedali, pois como descreve
Lourenço, a aventura para Guedali, em um sentido mais lúdico, torna-se
impossível diante da presença real e devoradora de sua própria imagem e de suas
sombras. Guedali é uma criatura envolta nas nebulosas imagens que chegam a
atingir em grande parte da narrativa uma atmosfera onírica. E dessa forma seus
atos seguem uma direção oposta à de seus intuitos.
As
intenções de Guedali geralmente são bloqueadas por barreiras impostas pelo
acaso ou por alguma falha sua, como a ida para São Paulo às vésperas do golpe
militar de 1964, e depois a mudança para o condomínio horizontal. Quando
Guedali e Tita ainda moravam em
São Paulo , certa noite foram convidados para comemorar o
aniversário de uma amigo, Paulo, na casa deste, e para lá se dirigiram. Nessa
passagem do romance há muitos símbolos e metáforas que são pertinentes para a
compreensão do texto.
Nessa
passagem, em determinada hora da noite, quando todos os colegas se divertiam
assistindo a filmes pornográficos, Guedali decide ir para o jardim da casa para
tomar ar fresco, e lá encontra Fernanda, esposa de Paulo. Os dois, dominados
por um desejo incontrolável, se entregam à uma relação sexual voraz e selvagem.
Terminada a relação os dois entram em casa e tudo continua normalmente.
O que é
relevante perceber nessa passagem é o significado do ambiente, do jardim, que
aqui aparece como sendo uma espécie de microcosmo, na qual Guedali encontra
diversos elementos que de certa forma contribuiram para as mudanças de
identidade pelas quais passou. O seu desejo incontrolável por Fernanda naquele momento é um resquício de sua natureza
animal, pois aqui Guedali já havia passado pela transformação de centauro para
homem. A natureza brutal dos centauros, seus antepassados, aqui torna-se real e
como sempre ocorre em seus atos, submerso em uma atmosfera onírica e nebulosa. A
sua natureza animal aqui, que para Guedali já fazia parte do passado, volta à
tona com força e o perturba de forma significativa.
Sentei no
banco, aturdido. O que tinha acontecido? Eu não sabia. Só sabia que tinha o
olhar turvo, e que o coração ainda me batia forte - e que a pata direita, me
dei conta, tremia convulsamente. Segurei-a: pára, diaba, pára quieta (SCLIAR,
1980, p. 139).
Ainda
aqui Guedali possuia patas, mesmo depois da operação ele não havia se tornado
um homem por inteiro. A natureza animal nessa passagem prevalece sobre a
humana, pois além de ainda possuir patas, ele não pode controlá-las, e dessa
forma a imagem delas remete aos centauros guerreiros da Tessália, aos cavalos
dos cossacos durante os pogroms [4]
na Europa, que pisoteavam os judeus das aldeias, espalhando terror e acentuando
ainda mais a aversão dos judeus por cavalos.
Um fato
curioso e importante inclusive para a compreensão do título do romance é esse
encontro de Guedali com Fernanda no jardim. Há de se levar em consideração a
atual situação de Guedali quando esse fato ocorre, ele já era um “ser humano”,
pelo menos aos olhos dos outros. Mas sua voracidade, o pênis descomunal, como é
descrito, o desejo à flor da pele, todos esses fatores enfim, vêm ao encontro da
sua natureza primitiva que ainda faz parte de seu ser. A sua natureza animal e o jardim aqui são muito significativos, e
o jardim representa um microcosmo dos meios em que viveu, com todas suas
maravilhas e mazelas. A fonte que há no jardim é uma alusão à natureza ambivalente
de Guedali, pois ao mesmo tempo em que serve de apoio para Guedali e Fernanda
consumarem um ato de prazer, também é o símbolo de um ato adúltero que
acompanha Guedali e que remete ao caráter não confiável dos centauros
mitológicos da Tessália.
Guedali
durante sua breve passagem pelo jardim, mesmo não sendo mais um “centauro”, age
como um, carrega ainda marcas de equino que foi, como suas patas, e seu drama
acentua-se a partir do momento em que se dá conta desse fato. A sua anormalidade
como humano lhe causa sofrimento e desconforto, fato que mostra a permanência,
mesmo que à sua revelia, como ser apagado, inexistente, como centauro, que não
sabe a qual meio pertence e de qual faz parte. E esse desconforto o leva
novamente ao Marrocos, para novamente se submeter à uma operação, mas desta
vez, para retornar à condição de centauro.
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