(António Lobo Antunes com soldados angolanos - 1972)
A guerra da independência
de Angola foi fonte inesgotável para muitos escritores portugueses da chamada
geração pós 25 de abril. Lídia Jorge tratou desta temática em seu romance A costa dos murmúrios (1988) com grande
desenvoltura e conhecimento de causa. Almeida
Faria, autor de Lusitânia (1980) não
tratou da guerra colonial como tema isolado neste seu romance, mas procurou
abordar com mais cuidado as relações distintas do indivíduo português após a
Revolução dos Cravos e suas consequências para uma classe média não operária e
todas as mudanças que vieram com a revolução. A guerra colonial e a permanência
do exército português em África são tão criticados quanto à situação que se
instaura no país após a revolução.
Porém, poucos autores
exploraram tão a fundo essa temática quanto António Lobo Antunes, que esteve em
Angola como oficial do exército português entre 1970 e 1973. Portugal vivia em
um regime fascista agonizante, principalmente após a morte de Salazar (1889 –
1970) enquanto as tropas portuguesas sofriam baixas consideráveis em seu
contingente pois, em Angola, os soldados portugueses se depararam com uma
guerra civil, foram vítimas de técnicas de guerrilha, pois os Angolanos não
tinham o mesmo poder bélico de Portugal, então partiram para o contato físico
direto.
Nos dois primeiros
romances de Lobo Antunes, Memória de
Elefante (1979) e Os Cus de Judas
(1979), os protagonistas são médicos psiquiatras que estiveram em África na
guerra colonial e voltaram para Portugal sofrendo grandes crises existenciais.
Ambos os livros são autobiográficos e retratam a dificuldade do indivíduo em se
readaptar à sociedade depois de ter visto os horrores da guerra. Dificuldade em
se relacionar com outras pessoas, relações sociais e amorosas, divórcio, perda
da guarda dos filhos e vários outros problemas se tornam irredutíveis na vida
desses protagonistas anônimos e a única solução que encontram é o isolamento, a
solidão.
A incursão de Lobo
Antunes em um tema tão forte como as marcas deixadas pela guerra o acompanhará
durante boa parte de sua obra ficcional. Livros como O Esplendor de Portugal (1997), O
Manual dos Inquisidores (1996), Exortação
aos Crocodilos (1999) já apresentam um estilo bem diferente dos romances
iniciais do autor. Além de o universo temático de Lobo Antunes ter se tornado
mais abrangente, a estrutura linguística dos romances publicados a partir dos
anos 90 apresentam uma mudança formal muito significativa, pois grande parte
dos enredos explorados por Lobo Antunes nesta “nova fase” de sua obra têm como
objetivo central não o enredo em si, mas em como esse enredo será apresentado
ao leitor. Percebe-se uma incursão por técnicas narrativas mais apuradas que em
suas primeiras obras, como a ausência de pontos finais nos fins de períodos, o
uso constante do discurso indireto livre e do fluxo de consciência. Algumas
dessas técnicas exploradas por Lobo Antunes (como o fluxo de consciência) são
muito mais comuns naqueles romances em que há mais vozes, pois é uma técnica
que auxilia o discurso no tempo psicológico, portanto faz mais sentido usá-lo
em um enredo em que há mudanças constantes de narrador e de foco narrativo do que
nos enredos mais lineares e com o foco narrativo em terceira pessoa.
Nos seus livros
publicados do ano 2000 em diante, como Não
entres tão depressa nesta noite escura (2000), Que farei quando tudo arde? (2001), Boa tarde às coisas aqui em baixo (2003), Eu hei-de amar uma pedra (2004), Ontem não te vi em Babilónia (2006), O meu nome é Legião (2007), O
arquipélago da insônia (2008) e Que
cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? (2009), Sôbolos rios que vão (2010), Comissão
das Lágrimas (2011), Lobo Antunes explorou muito questões relacionadas à
perda, seja financeira, física, moral ou emocional, a perda, seja ela qual for,
é o mote de praticamente todas as obras recentes do autor de Os Cus de Judas. E em quase todos os
casos os indivíduos que convivem com a perda não têm uma relação social e
familiar pacífica, vivem uma vida de negações, projetos que nunca se
concretizarão e dessa maneira se veem num labirinto existencial sem solução,
sem saída e niilista.
O Manual dos
Inquisidores
e as faces do 25 de abril
Depois de certo tempo
vivendo sob um regime fascista, o povo português estava saturado de um regime
autoritário e repressor. O povo ansiava por mudanças a qualquer custo, e esse
desejo por mudanças culminou na Revolução dos Cravos, no dia 25 de abril de
1974. Muitos escritores se engajaram nesta empreitada em prol de uma suposta
liberdade que viria com a derrocada do regime salazarista, mas o que veio logo
a seguir não foi a tão almejada liberdade há tanto tempo esquecida, mas sim um
período de transição complicado de uma ditadura fascista de extrema direita
para um governo também autoritário de esquerda com princípios stalinistas.
No livro O Manual dos Inquisidores (1996) António
Lobo Antunes descreve sob vários narradores e aspectos as consequências da
Revolução dos Cravos, como falência financeira e moral, perda de bens, perda de
cargos públicos e a tomada do poder por forças operárias e o exílio de
ministros e pessoas em geral ligadas ao governo deposto. O romance mesmo não
tendo um personagem principal, gira em torno do drama de Francisco, um homem
que no passado foi ministro da defesa durante o governo de Salazar, homem
conhecido por sua servidão ao ditador e por ser, por sua vez, ditatorial em seu
mundo, que restringe-se à casa em Lisboa, à quinta em Palmela, no convívio com
as amantes e empregadas e com seus funcionários do ministério.
Durante toda a
narrativa há uma espécie de eco que trespassa todo o romance, que é a própria
voz do ministro que dizia que nunca tirava o chapéu, pois era um sinal de
hierarquia. Dizia o ministro:
Nunca
devia ter tirado o chapéu da cabeça para que se soubesse quem era o patrão (p.14).
Esta é uma das diversas
formas que Lobo Antunes mostra como um regime autoritário atinge até os
próprios agentes do governo, pois essa ideia de nunca tirar o chapéu para
mostrar quem manda é um discurso completamente fora da realidade e provinciano,
como se fosse proferido por um coronel feudal decadente que vê na imposição de
certos caprichos e regras sem sentido a única maneira de impor respeito.
É interessante
ressaltar que o poder neste romance não tem apenas um detentor, pois há três
momentos separados: a fase de opressão durante a era Salazar; o período de
transição entre uma ditadura e uma pseudodemocracia e uma era nova, de governo
democrático capitalista. Um personagem singular no romance é João, filho do
ministro Francisco que herda suas terras e propriedades, mas devido à situação
geral de Portugal pós 25 de abril perde tudo para a família de sua ex-esposa,
donos de banco. João foi vítima de um golpe financeiro que além de o deixar
falido financeira e moralmente, fez com que o ministro, no fim da vida, fosse
abandonado num lar para idosos.
Todas as idas e vindas
dos vários narradores servem como representação de um desespero coletivo que
assola Portugal em épocas incertas, seja durante a ditadura ou não. A vida
coletiva após a revolução adquire certa cor, enquanto a vida privada, tal como
era antes, deixa de existir. As mudanças de poder refletem um estado sem
perspectivas vindouras com uma população cada vez mais alienada, que é
simbolizada pelos abandonados no fim do romance, o ministro e sua ex
governanta, Titina.
Esses dois personagens
dão o tom mais amargo do romance, pois já abandonados em um asilo, deliram e
imaginam que em breve alguém virá buscá-los. Interessante aqui é que Lobo
Antunes dá a entender que os dois estão no mesmo asilo, mas em momento algum se
encontram, sabem da existência um do outro mas em sua alienação, em sua doença,
se ignoram por completo. É uma metáfora sobre a população portuguesa que
caminha sem rumo, sem objetivos após sofrer perdas irreparáveis, como foi o
caso de João, que perdeu a fazenda; ou de Milá, ex amante do ministro que vivia
com a mãe em um apartamento de classe média alta e após o 25 de abril, como o
ministro perde seu poder e sua influência, Milá com sua mãe são expulsas do
apartamento onde moravam depois de passarem dificuldades financeiras e
humilhações dos vizinhos.
Esses personagens são
alguns dos vários exemplos de pessoas diretamente atingidas pelo impacto da
Revolução dos Cravos, e passam a viver em uma espécie de situação limite em que
a qualquer momento algo pode acontecer. Vivendo na iminência de algo ainda mais
dramático acontecer, as pessoas, João e Milá são apenas alguns exemplos dessas
pessoas, tornam-se prisioneiras de uma situação absurda da qual não podem se
livrar, e por isso se alienam e é como se a vida que tiveram anteriormente
nunca tivesse existido.
Conhecimento do Inferno e a gênese da polifonia
Com a publicação de Conhecimento do Inferno (1980) Lobo
Antunes passa a um novo patamar na literatura portuguesa contemporânea. Conhecimento do Inferno é o último romance
que compõe uma trilogia sobre os horrores da guerra colonial juntamente com Memória de Elefante (1979) e Os Cus de Judas (1979).
Os dois primeiros
livros se assemelham muito em relação ao estilo e seus enredos são muitos
circulares, pois ambos retratam o retorno de um médico psiquiatra de Angola
para Lisboa ao fim da guerra naquele país.
As referências históricas, além de elementos autobiográficos, são marcas
que permeiam esses três romances iniciais de Lobo Antunes, porém, a
experimentação lingüística tão presente em suas obras mais recentes e ainda não
explorada nos dois primeiros livros, passa a fazer parte do universo ficcional
do autor a partir de Conhecimento do
Inferno, com menos diálogos em um plano físico e mais fluxo de consciência.
Aparentemente o enredo
de Conhecimento do Inferno é muito
simples. O livro retrata uma viagem pelo sul de Portugal feita por um médico
psiquiatra depois de voltar de Angola no início dos anos 1970. Novamente a
temática da guerra colonial se faz presente na ficção de Lobo Antunes, porém
sob uma perspectiva mais sombria em relação à guerra, em relação à vida e à
própria psiquiatria.
O romance é dividido em
12 capítulos e cada um desses capítulos centra-se em um ponto geográfico
específico da viagem. A viagem desse psiquiatra desenvolve-se em vários níveis
narrativos, como no percurso percorrido no carro, em suas recordações da
infância, nas recordações de Lisboa antes de ir pra África e das recordações
dos horrores da guerra. Todos esses aspectos se interpõem através de uma voz
narrativa que permeia todo o romance, porém, em alguns momentos, há mais de um
narrador. Um deles é o próprio personagem principal, tornando o romance
auto-diegético, e outra voz, essa em terceira pessoa, onipresente e onisciente.
Durante suas
recordações de seu trabalho como psiquiatra há dois tópicos distintos: um deles
é sua prática médica em Lisboa antes de embarcar para Angola; o outro é sua
prática médica em África, durante a guerra. São tópicos distintos porque nas
recordações de Lisboa, a psiquiatria e a medicina geral são retratadas como
ciências inúteis e cruéis, que além de maltratar seus pacientes, colocam os
médicos em um nível superior, e naturalmente essas passagens são descritas com
um humor ferino.
-
Foi você quem disse que a Psiquiatria é mais nobre das especialidades médicas?
– perguntou ele. – Gaita, se eu soubesse o que sei hoje tinha seguido dentista
(p.62).
Já nas recordações de
Angola, a psiquiatria não existe, com exceção de alguns flashbacks de seu trabalho em Lisboa, pois na guerra não há espaço
para a psiquiatria, e isso vem de encontro à tese que Lobo Antunes, o autor e o
personagem, defende no romance, que é a inutilidade do que faz e que por
conseqüência é a inutilidade de toda uma vida, o que remete à náusea sartreana.
O que de fato importa na guerra é a sobrevivência física, pois a mental já
está, automaticamente, condenada. É impossível retornar para casa, e isso
torna-se evidente, sem traumas, sem lembranças dos acontecimentos terríveis
presenciados numa guerra cruel. Nota-se claramente essa distinção espacial
entre Lisboa e África tanto na narrativa auto-diegética quanto no foco
narrativo em terceira pessoa.
Outro aspecto relevante
da narrativa de Conhecimento do Inferno
que evidencia bem essa nuance da troca de foco narrativo, é a autocitação.
António Lobo Antunes, o autor do romance Conhecimento
do Inferno, cria um personagem fictício para ser o condutor
(ficcionalizado) da realidade, ou seja, o Lobo Antunes real traz realidade à
sua ficção, tornando seu texto complexo e experimental, muito mais do que uma
simples narrativa auto-biográfica, chega a ser um mosaico pós-moderno sobre as
angústias do homem contemporâneo.
Conhecimento
do Inferno foi uma espécie de livro de transição de António
Lobo Antunes, pois é a partir desta obra que o autor de Os Cus de Judas passa a explorar com mais perícia os meandros da
polifonia e da experimentação lingüística. É com Conhecimento do Inferno que
Lobo Antunes assume de fato uma postura diferenciada na literatura portuguesa,
é com este romance que ele mostra que não há necessidade de contar um história
para produzir um grande livro, mas explorar a mente de seus personagens para
atingir o domínio da técnica narrativa.