(Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Novembro 2013)
Vários teóricos de vertentes
literárias das mais variadas já se ocuparam com a questão do espaço na
literatura. Nomes como Walter Benjamin, Bakhtin, Alfredo Bosi, Umberto Eco,
etc., em algum momento de suas produções ensaísticas dedicaram considerações
acerca da representação do espaço em narrativas, principalmente nos gêneros
conto e romance.
Há de se levar em
consideração as formas dos dois gêneros narrativos, ou seja, a construção de
uma estrutura espacial mais sólida e consistente é mais viável na narrativa
mais longa. O romance, por ser formado a partir de núcleos espaciais mais
abrangentes, naturalmente as opções de espaços são bastante diversas, o que
contribui para uma oscilação menor em seu núcleo estrutural.
Já o conto tende a
ser mais direto, sem floreios estilísticos muito complicados que talvez fossem
melhor realizados em narrativas mais longas. Porém, vários autores romperam
algumas barreiras com essas formas tradicionais de construção espacial nas
narrativas mais curtas, como Machado de Assis, que escreveu verdadeiros
tratados sociológicos sobre a sociedade carioca do século XIX através do conto;
Vergílio Ferreira, grande escritor português do século XX, talvez o maior
romancista de língua portuguesa, inovou o gênero romance em Portugal
introduzindo elementos do ensaio e de tratados filosóficos nas narrativas de
ficção, tanto no conto quanto no romance.
Em Curitiba (pelo
menos na Curitiba underground) há alguns
escritores que vêm trabalhando seus contos a partir desse aspecto não
tradicional, o mais original é ReNato Bittencourt Gomes. ReNato (seu nome é
grafado dessa forma), nasceu em Telêmaco Borba em 1967 mas vive em Curitiba. É
professor, revisor e Mestre em Estudos Literários pela UFPR. É autor de Mecânica dos fluidos (2002), Liturgia do Sangue (2009) e Inventário e Descobrimentos (2010).
Seu melhor trabalho
sem dúvida é Liturgia do Sangue: a
memória do lobo. O livro é dividido em quatro partes: a tribo, os ofícios,
as lobas e o clã. Ao todo são vinte contos que compõem a obra, e um dos
aspectos mais interessantes é que aparentemente não há nenhuma história sendo
contada. Os contos são verdadeiros flashes
de um anônimo que assume estar escrevendo algo. A metalinguagem é assumida
abertamente em várias passagens ao longo do livro, tendo ou não alguma ligação
entre si.
Bittencourt usa
vários símbolos em todos os contos, e vários desses símbolos reaparecem em
contos posteriores. Um dos símbolos mais significativos é a figura do lobo, de
sua aproximação com a condição humana. O indivíduo não passa de um animal
acuado preso em seu próprio meio e age instintivamente. Outro símbolo
importante a ser levado em consideração como um elemento estrutural e conectivo
entre os contos é a presença do uivo,
muito semelhante à náusea sartreana e que depende do outro para ser silenciado.
O “uivo” é visceral e geralmente parte de situações limite, de alarme.
Além da presença do
“uivo” atávico durante várias partes do livro há repetidas referências à “tribo”,
que rege preceitos imutáveis, como regras de conduta, preceitos morais e
códigos sociais bastante característicos. E como o uivo é atávico, como uma
herança muitas vezes não desejada, gera um conflito existencial forte no
indivíduo que é elemento integrante da “tribo”.
No conto Liame
(e em vários outros) não há ações convencionais. Há reflexões sobre o ser
humano, sobre a miséria de sua condição animal. A animalização do homem é
recorrente na maioria dos contos. Há um belo trabalho formal nesse conto, o que
mostra um autor que domina a técnica narrativa como poucos.
Em Filhos
da Lei, um dos melhores textos do livro, o narrador se dirige
diretamente ao leitor. Suas ações são (como é comum no livro todo) solilóquios
intermináveis e impenetráveis. Não há nenhuma espécie de interrupção exterior
ao seu discurso e novamente a metalinguagem serve como elemento fundamental
para o fazer literário, para a construção narrativa.
No belo Liturgia,
Bittencourt se utiliza da prosa poética com precisão, principalmente em cenas
que sugerem (muitas ações são apenas sugeridas) atos sexuais. Seu estilo
narrativo é propício para a prática de uma prosa poética fluente, nada é
forçado ou artificial nos contos, o que contribui para uma leitura que flui, apesar
do rigor que exige do leitor.
É interessante ressaltar
que mesmo o autor não contando uma história nos moldes tradicionais,
propositalmente há uma espécie de “voz” que perpassa todo o livro, como se
fosse o alter-ego de Bittencourt que clama por sentido em um ambiente caótico e
nonsense. É como se o mesmo narrador
autodiegético narrasse todos os contos como se fossem pequenas impressões do
que aponta e vê.
No conto Minhas
palavras, tua flor carnívora, há a presença da ideia sartreana de
encontrar-se consigo próprio, encontrar-se com o absurdo de ser aquilo que se
é.
Sou o lobo do
canivete, como meu pai e antes dele meu avô e antes... (p.117)
Em todo Liturgia de sangue: a memória do lobo há
lacunas deixadas por Bittencourt para serem desvendadas e degustadas pelo
leitor atento. Deve-se estar atento aos meandros poéticos durante toda leitura.
O livro não apresenta oscilações estruturais em sua forma nem em seu conteúdo.
Sua relevância unitária é significativa, o que é fato incomum em coletâneas de
contos, pois dificilmente essas coletâneas são inteiramente boas e relevantes
por não apresentarem, muitas vezes, essa homogeneidade estilística construída
por Bittencourt. Livro forte que dificilmente será superado por algum outro
escritor brasileiro contemporâneo.
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