Quando
Proust escreveu sua obra monumental, Em
busca do tempo perdido, muito se especulou se o escritor francês de fato
escreveu sobre si próprio ou se era tudo ficção. Há de se levar em consideração
os vários meandros dos conceitos de ficção ou ficcionalidade que sempre fizeram
parte do universo literário. Mesmo que a mimese faça parte da obra de arte como
elemento fulcral dentro de seu modus
operandi, muitos questionamentos se fazem presentes no consumidor de arte
(leitor, ouvinte, espectador) por não levar em consideração o distanciamento
brechtiano necessário entre obra e leitor.
Vários
outros escritores praticaram o que algum tempo depois de Proust se convencionou
chamar de narrativa autobiográfica, como Kafka, Hemingway, Truman Capote e mais
recentemente Philip Roth, Paul Auster, Moacyr Scliar, Clarice Lispector, Cristovão
Tezza e o fenômeno editorial norueguês Karl Ove Knausgard. Desconhecido do
público brasileiro até a publicação dos primeiros volumes da série Minha
Luta (o próprio autor disse ter se baseado no livro de Adolf Hitler,
porém a obra não tem nada relacionado ao nazismo) e até sua participação na
FLIP 2016, na qual foi uma das atrações principais, Knausgard tornou-se
mundialmente conhecido por abordar em seus livros sua própria vida. Ao todo são
seis volumes, sendo que os quatro primeiros foram publicados no Brasil, A morte do Pai (2013), Um outro amor (2014), A ilha da infância (2015) e Uma temporada no escuro (2016), todos editados
pela Companhia das Letras.
Os
livros de Knausgard têm chamado a atenção do público e da crítica por vários
motivos, principalmente por serem relatos desprovidos de quaisquer tipos de
pudores e por serem extremamente bem escritos. Todos os quatro volumes
publicados em português são livros bastante extensos, porém a leitura não é
enfadonha nem pesada, muito pelo contrário, Knausgard assume um tom muito claro
de auto-ironia que permeia toda sua obra.
No
quarto volume da série , Uma temporada no
escuro, nos deparamos com o jovem Karl Ove Knausgard, aos 18 anos, que
passa um ano em uma aldeia no norte da Noruega trabalhando como professor
substituto. Mesmo sendo muito jovem, Karl Ove já tinha o objetivo de tornar-se
escritor, e esse foi um dos motivos dessa espécie de fuga ontológica. Fuga de
si próprio, do espectro do pai ausente e alcoólatra, das desastrosas relações
amorosas e de uma espécie de spleen
que o atormenta com frequência.
Entre
seu trabalho como professor na escola da aldeia, porres homéricos, o jovem Karl
Ove tenta, desesperadamente, tornar-se um escritor. Logo o jovem professor
vê-se diante de dilemas e neuras relacionados ao magistério que nunca havia
enfrentado antes. Desde problemas em administrar suas turmas à dificuldade de
controlar seu desejo por suas alunas, muitas das quais eram apenas dois anos
mais novas que ele. Há de se levar em consideração em uma obra como Minha Luta, os conceitos bakhtinianos
de autor-pessoa e autor-criador. Para Bakhtin, o autor-criador assume uma
posição externa que permite dar forma e acabamento estético à personagem e ao
mundo habitado por ela.
“Nesse
excedente de visão (exotopia) e conhecimento do autor, sempre determinado e
estável em relação a cada personagem, é que se encontram todos os elementos do
acabamento do todo, quer das personagens, quer do acontecimento conjunto de
suas vidas, isto é, do todo da obra”.
Por
isso, por mais que tenhamos em mente que Minha
luta é uma obra autobiográfica, haja evidentemente o elemento da
autocitação, narrativa autodiegética, deve-se ter em mente certo distanciamento
entre autor e obra.
Ainda
tendo como base os estudos de Bakhtin (Estética
da criação verbal), autor-pessoa é aquele que “reflete a posição
volitivo-emocional da personagem e não sua própria posição em face da
personagem”, (p.5) ou seja, o sujeito físico. Auto-objetivação do autor-pessoa
na personagem : “não deve ocorrer esse retorno a si mesmo”.
O
escritor Karl Ove Knausgard, autor da série Minha luta, o sujeito físico, em várias entrevistas e em sua fala
na Flip 2016, deixou bem claro que não mudou nome algum em seus relatos. Nem
nomes de lugares e situações, como o fato de aos 18 anos ainda ser virgem e
nunca ter se masturbado, ter trabalhado como cronista de um jornal independente
de música; porém, o autor-pessoa Knausgard, em mais de uma entrevista, afirma
que sua avó paterna, assim como seu pai, era alcoólatra, fato que não ocorre no
livro, Uma temporada no escuro, no
qual descreve seus avós como dois idosos tradicionais e caretas. Volta-se aqui
à questão do distanciamento e do conceito da posição volitivo-emocional da
personagem, e não do autor.
O
trabalho de Knausgard com a memória é muito bem executado através de
reminiscências, solilóquios, longos flashbacks que tornam suas narrativas
mosaicos em que nada é descartável; cada palavra, cada lembrança está no lugar
certo, e em momento algum torna-se piegas. As madeleines do jovem Karl Ove são
os vários copos de vodka que degusta. O final do quarto volume é um belo
exemplo desse desprendimento afetivo e de auto-ironia, quando depois de ter
deixado seu posto como professor no norte após um ano, Karl Ove, em um festival
de música, está muito próximo de perder sua virgindade. O autor-pessoa, ao
invés de manter o tom poético que experimenta em alguns fragmentos do romance,
reproduz o estilo do jovem aspirante a escritor de 18 anos que foi.
“Vilde
se arrastou até a entrada da barraca, abriu o zíper e então, com as pernas para
dentro e o peito para fora, vomitou. Depois gemeu e mais um espasmo atravessou
o corpo dela, eu vi aquela bunda enorme na minha frente e não pude resistir,
segurei aquelas coxas, meti pra dentro e continuei mandando ver”. (p.495)
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