Rogério Pereira, diretor e editor do jornal
curitibano de literatura Rascunho, certa vez disse que a pior coisa do
mundo é ter amigos escritores, ou conhecidos escritores. Claro, para um crítico
literário. O motivo que Rogério Pereira alega é que se um crítico literário tem
amigos ou conhecidos escritores, ele tende a mentir sobre o livro que está
analisando, ou fala a verdade e perde a amizade. É uma encruzilhada, de fato.
Mas não quando o amigo ou conhecido é um grande escritor. Meu caso, que sou
conhecido, e imagino que agora já possa me considerar amigo, do escritor
carioca Mariel Reis.
Meu contato com Mariel começou através deste
singelo blog, quando ele me enviou um e-mail elogiando um artigo que eu havia
escrito sobre Raul Brandão. A partir de então começamos a trocar algumas
idéias, alguns contos e Mariel me disse que tinha um livro inédito de contos, o
qual me enviou para ler e dar meu parecer. Como na época eu estava pesquisando
para minha monografia no curso de especialização em literatura brasileira, fui
deixando a leitura do livro de Mariel pra depois. Não sabia eu o que estava
perdendo. Eu podia ter deixado um Alfredo Bosi pra depois, um Candido, um
Stuart Hall.
O volume leva o título de John Fante trabalha no
Esquimó (2008), e reúne 16 contos. Mariel aborda temas ligados à classe
média brasileira, como solidão, a violência urbana, carência moral entre os
membros da sociedade, e em vários dos contos se aproxima muito do escritor
curitibano Dalton Trevisan. Mariel leva muito em consideração o espaço urbano,
fazendo deste, um ambiente degradado, ocupado por párias e elementos
marginalizados, como no conto A Gorda, que conta a aventura sádica de um
garoto de programa com uma cliente extremamente gorda, repulsiva em sua imagem
e em seu caráter.
Os segmentos de imagens que Mariel trabalha nessa
narrativa sombria é de extremo bom gosto e mostra um escritor que domina
perfeitamente a técnica do conto, que, sendo uma narrativa curta, tende a
propiciar ao leitor uma tensão que está na iminência de acabar. Mas não acaba
com o final, e isso torna o conto mais saboroso ainda.
Os contos de Mariel, além de mostrarem tipos
estranhos e grotescos, também apresentam uma atmosfera fantástica, bem ao
estilo de Murilo Rubião e Moacyr Scliar. O conto Jonas, a Baleia, ao
mesmo tempo em que faz alusão ao profeta bíblico, faz alusão também à Metamorfose,
de Kafka, pois nesse conto um jovem acorda transformado numa baleia. E o mais
interessante, para confirmar que Mariel pratica também literatura fantástica, é
que no final da narrativa, assim com Gregor Samsa, Jonas é visto dessa forma, e
seu vizinho não estranha o fato de haver uma baleia no quarto e até considera o
olhar do animal semelhante ao de Jonas, e dessa maneira o absurdo é aceito
dentro do universo da ficção. É o que Todorov chama de sobrenatural aceito, em
seu livro Introdução à Literatura Fantástica.
No conto A Viagem, mais uma vez Mariel
encontra na violência urbana tema para sua narrativa. Mas não se resume a isso.
Nesse conto há um narrador em primeira pessoa (outra característica de Mariel é
oscilar muito o seu foco narrativo), que é um assaltante de ônibus num ambiente
periférico no Rio de Janeiro, mas é um assaltante que tece considerações
metafísicas sobre os atos criminosos que comete. Ele está cansado do trabalho
que exerce, e quer parar. Esse conto é um exemplo de que a literatura de Mariel
Reis não pode ser vista como pessimista, mas sim como realista, e até há uma
pitada (contida, claro) de esperança.
Em todos os contos, ou em quase todos, Mariel além
de construir personagens de personalidade forte e decadentes moralmente, também
leva muito em consideração o espaço. O espaço em todo o livro é muito bem
trabalhado, e em algumas das narrativas exerce influência direta sobre os
personagens. Como acontece no conto O Prisioneiro, entre os melhores do
volume. Há nesse conto referências diretas à sociedade e às suas mazelas, como
o caso da violência e da superlotação dos presídios. O protagonista narrador,
um presidiário que espera sua liberdade, é um indivíduo que já se acostumou à
sua atual situação, e dessa maneira, é alguém totalmente assimilado ao meio ao
qual pertence. Mesmo não querendo permanecer preso, não se sente capaz de
retornar à sociedade e as considerações filosóficas que tece é de extrema
beleza e profundidade.
O conto Por Mil Demônios é o maior exemplo
de literatura fantástica que há no livro. É dividido em oito partes, e conta a
história de uma moça que carrega em seu ombro esquerdo um demônio. Depois
percebemos que o demônio carrega em seus ombros homúnculos. É uma metáfora
sobre a conturbada relação interpessoal, pois todos estão (nesse conto) fadados
a sucumbir aos próprios demônios e também aos demônios dos outros.
Em relação à técnica de Mariel nesse conto, é
interessante apontar que há mais de um narrador, e com isso ele demonstra bom
domínio da técnica narrativa. Mariel durante a composição da narração soube
realizar as mudanças narrativas na hora certa, sem experimentalismos baratos e
amadores. Há uma forte presença de um discurso polifônico nesse conto, que em
muitos momentos exige atenção dobrada do leitor. Também há de se levar em
consideração a presença de um narrador onisciente e onipresente, que narra mas
não participa dos fatos narrados. É uma inteligente manobra de mudança do foco
narrativo.
A opção pela narrativa auto-diegética (em primeira
pessoa) dá ao escritor uma ferramenta a mais para trabalhar a construção de
seus personagens (seu interior), pois o foco narrativo em primeira pessoa
permite a exploração do fluxo de consciência. Junto com isso, há a opção de
Mariel pela ausência de diálogos, fato que permite uma realização quase
completa do fluxo de consciência. Esse fato se evidencia mais naqueles contos
que têm como tema o espaço e o ambiente urbano.
Como um todo, Mariel Reis fez em John Fante
trabalha no Esquimó um trabalho notável. Mesmo discordando de Mariel em
algumas escolhas narrativas em alguns dos contos, seu livro é de extrema
importância para o cenário literário atual, principalmente em relação ao conto,
que estava precisando de um sopro de vida. Mariel Reis consegue isso. E assim,
quem sabe, como no conto que dá título ao livro, não passemos a ver o rosto de
Mariel em cada esquina do Rio de Janeiro, sempre à procura do autor preferido.
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