O
ato de escrever é solitário e silencioso. O ato da leitura também exige silêncio.
A complexa prática da leitura exige um silêncio externo, mas internamente,
quanto mais inquietos permanecermos durante a leitura, melhor. Esse silêncio
metafísico oprime o verdadeiro leitor, mas não é uma má opressão, antes uma
opressão que leva à reflexão, e é isso que importa. Portanto, não basta haver
silêncio pura e simplesmente, mas um silêncio rangente e intimista. Elementos
que não se aplicam apenas à literatura, mas (principalmente) à vida.
Mariel
Reis, escritor carioca que para os leitores deste blog dispensa apresentações,
acaba de publicar A arte de afinar o
silêncio (2012, Ponteio. 114 p.), uma coletânea de contos. Mariel é um sobrevivente,
pois insiste na produção de um gênero que não é muito popular no Brasil.
Mariel, desde seu primeiro livro, Linha
de recuo e outras estórias, passeia sutilmente pelos meandros da narrativa
curta, captando sua essência como poucos. Qualidade típica dos grandes mestres.
A
estrutura de A arte de afinar o silêncio
simula a programação de um dia da televisão. Mariel divide o livro em pequenas
seções, como “Bom dia”, “Programa feminino”, “Telejornal – 1ª edição”, “O povo
quer saber”, “Novela das seis”, “Telejornal – 2ª edição”, “Entrevistas”, “Telejornal
– 3ª edição” e encerra com “Fora do ar”. Não há um número padrão de contos por
capítulo e nem temática fixa. Desde Jonh
Fante trabalha no esquimó (2008,
Calibán. 76 p.) que Mariel explora a chamada prosa urbana, seca ao estilo de
Hemingway, sombria ao estilo de Dalton Trevisan, povoada por espectros
decadentes, párias, viciados, prostitutas, assassinos, policiais corruptos,
porém, com forte carga lírica.
Mariel
inicia o livro com o conto “O poste”, uma espécie de fluxo de consciência de um
anônimo perdido na cidade. O conto, que é composto por pouco mais de dez
linhas, é uma reflexão sobre o cotidiano urbano. Pode ser o Rio de Janeiro de
Mariel Reis, pode ser a minha Curitiba ou qualquer outra metrópole do mundo. Em
muitos contos Mariel explora as referências geográficas do Rio de Janeiro, mas
seu texto é universal, sem amarras.
Um
ponto alto do livro é a série de microcontos “O labirinto”. São diversos
flashes da crua realidade urbana vistos por espectadores anônimos que ao longo
da narrativa vão sofrendo uma espécie de animalização, vão se transformado em
bestas que vivem à beira do caos, por instinto.
A mulher acena para um homem na
banca de jornal.
Ela pede que a siga. Descem algumas
ruas.
Ele a perde por alguns segundos.
Ela indica um bar, esvoaçando para
os fundos da espelunca.
Banheiros.
Feminino e masculino.
Empurra uma das portas. A fetidez de
goelas escancaradas.
Ela colada à parede. Arregaça a
parte inferior do vestido.
- Você vai me comer – ela ordena.
Um clarão, depois outro.
Sangue e merda.
Ela retoca o batom. (p.63)
Esse
fragmento mostra bem essa verve literária voltada ao absurdo da vida em uma
situação limite. Há vozes que permeiam os pequenos textos de “O labirinto” que
não são ouvidas, o leitor deve procurá-las nas entrelinhas, nas sugestões de
atitudes mínimas de afeto. São personagens vigiados e cercados por espectros
que não veem. Mas estão sempre à espreita. Há sempre a iminência de algum ato
violento: um assalto, um assassinato, um estupro.
Os
personagens de Mariel são vítimas de perdas e ausências irredutíveis, e desta
forma sofrem um emparedamento metafísico. É a imagem do sujeito contemporâneo
sem perspectivas, pura massa de manobra.
O homem-bomba, quando sai vivo,
depois do turno de trabalho, deve se reunir com outros homens iguais a ele,
tristes como ele, para sonhar com o mundo em cinzas. (p.65)
“O
labirinto” é um mosaico do ambiente urbano atual composto por sociopatas, e
estes sociopatas procuram justificar seus atos de barbárie. Não há protagonistas,
seus próprios atos violentos assumem o vácuo deixado por eles. Assim como os
espaços descritos nas micronarrativas de “O labirinto” não são nomeados, os
personagens (tipos) também não o são. Agem por impulso, nunca pensam, querem e
buscam o imediato em forma de prazer ou benefício próprio. Nota-se um movimento
crescente de parágrafo para parágrafo, o que mostra domínio total da técnica
narrativa.
Mariel
deixou o melhor para o fim. Depois de ler a bela sequência de “O labirinto”,
confesso que não esperava encontrar algo tão bom ou do mesmo nível, mas Mariel
deixou lá, quase escondido nas últimas páginas, “Um conto sobre a inveja”. Em meio a um
universo composto por brutalidade, violência e barbárie, Mariel compõe, sem
sombra de dúvida, seu melhor texto escrito em toda sua carreira de contista.
Mariel
narra as agruras de Lima Barreto, que vai encontrar-se com seu “rival”, ninguém
menos do que Machado de Assis. No caminho para a casa do bruxo, Lima Barreto
conhece Bento Santiago, o próprio Bentinho de Dom Casmurro, e Bento, agora advogado, lamenta-se por ter virado matéria para alguns escritores galhofeiros. E
a ação transcorre toda nesse ritmo de lamentos e também, como se descobre no
final, de delírio.
Em
conversa recente com Mariel, não pude deixar de comparar “Um conto sobre inveja”
com Meia-noite em Paris (2011) de
Woody Allen. E é essa questão que torna A
arte de afinar o silêncio o melhor livro de contos de um escritor brasileiro
contemporâneo que li desde Desgracida
(2010) de Dalton Trevisan. Mariel Reis transita do trágico, obsceno, grotesco e
bárbaro para o lírico, poético e sublime com uma precisão que não vejo em
outros escritores atuais. Afinadíssimo esse silêncio!
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