José Saramago (1922-2010)
foi um escritor que se aventurou em diversos gêneros literários, como poesia,
conto, teatro, crônica, ensaio, romance, livros de viagem e a lista segue adiante.
Mesmo tendo deixado de publicar livros de poesia, o lirismo esteve presente nos
textos de Saramago até o fim. Não que ele praticasse o que se convencionou
chamar de prosa poética, mas há muitas passagens líricas em alguns de seus romances,
como nos livros O Memorial do convento
(1982), História do cerco de Lisboa (1987),O Evangelho segundo Jesus Cristo
(1992), Ensaio sobre a cegueira (1995), etc.
O Ensaio sobre a cegueira foi o primeiro grande romance publicado por
Saramago depois do polêmico O Evangelho
segundo Jesus Cristo, de 1992, e
toda a narrativa do romance apresenta uma atmosfera muito rica em detalhes,
porém os detalhes minuciosamente descritos por Saramago fazem parte de um
universo ficcional que jamais seria possível na realidade.
A trama de Ensaio sobre a cegueira não gira em torno de um personagem em especial mas
em torno da própria epidemia de cegueira que atinge toda a população. Há de se
levar em consideração aqui que o local não é nomeado, assim como não o são os
personagens. Os personagens são designados pelas funções sociais que exercem ou
por peculiaridades físicas, como o médico, o taxista, o policial, a rapariga
dos óculos escuros (que era prostituta), a camareira, o primeiro cego, o
ladrão, o rapaz estrábico e por fim, a mulher do médico, que é a única pessoa
que continua a enxergar.
Como as causas da repentina
cegueira são desconhecidas por todos, os cegos aos poucos vão sendo recolhidos
a um manicômio abandonado e são mantidos em quarentena. Mas conforme o tempo
vai passando todas as pessoas que permaneceram no lado de fora também vão
perdendo a visão e a vida na reclusão torna-se insuportável. Os cegos dentro do
manicômio se dividem em grupos por diversas alas, e o que acaba acontecendo no
cotidiano dos internos nada mais é do que um simulacro da “vida real” que ficou
para fora dos muros, pois há ali corrupção, exploração dos mais fortes pelos
oprimidos, estupro, assassinato e tantas outras mazelas que são duramente
criticadas por Saramago.
A genialidade de Saramago
neste romance não se restringe à metáfora da cegueira como “não enxergar o óbvio
que está diante dos nossos olhos”, mas ele criou uma atmosfera kafkiana, pois
há no romance uma grande carga de absurdo, e o absurdo na narrativa, mesmo
causando as catástrofes limítrofes entre o real e o imaginário, é aceita dentro
do universo da ficção. É o que o teórico Tzvetan Todorov classifica como sobrenatural aceito.
O fato de Ensaio sobre a cegueira conter alguns
conceitos e elementos do Realismo Mágico (corrente literária muito popular na
América Latina durante os anos 60), não torna a obra e nem o autor pertencentes
à corrente, como bem observou o teórico Temístocles Linhares (1973): “há uma distinção entre o fantástico no
conto e o conto propriamente fantástico”. Sabe-se que no caso de Ensaio sobre a cegueira não se trata de um conto, mas a lógica de Linhares
também aplica-se ao romance.
Assim como a epidemia
chegou sem explicação e sem respostas, ela desaparece, bem ao estilo do
Realismo Mágico. E assim como todos os cegos que perderam e recuperaram a visão
sem explicações aparentes, a mulher do médico, a única pessoa que se soube que
nunca perdeu a visão, continua a enxergar como sempre enxergou e esse fato é
totalmente aceito neste universo absurdo e sombrio que, mimético, é o leitmotiv de todo o romance.
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