O tempo é o fator que talvez possa explicar melhor algumas
coisas que simplesmente não escolhemos; ou melhor, insistimos em dizer que não
escolhemos. Geralmente elementos passionais, arrebatadores, de fato têm um
poder sobre nós que muitas vezes desconhecemos. Questões religiosas,
ideológicas, políticas, muitas vezes seguem padrões passionais bastante
semelhantes, e muitas vezes levam à cegueira, a conflitos, a rompimentos.
Dito isso, volto ao ano de 1989. Mais precisamente a uma
quarta-feira fria, dia 21 de junho. Naquela época tínhamos um novo membro na
família, meu irmão mais novo, que tinha pouco mais de sete meses, e a casa
estava agitada. Não tenho muitas lembranças do dia, então possivelmente devo
ter ido para a escola à tarde, e voltei no fim do dia.
Lembro de meu pai estar nervoso por causa de um super jogo
importante, uma final em que boa parte do Brasil estaria ligada. O time para o
qual meu pai torcia, e que virou o meu time por causa dele, era o Botafogo. É
curioso (penso nisso hoje, mais de trinta anos depois) comparar a visão de meu
pai, um homem de 39 anos de idade, com a minha, um piá de 6, sobre o time para
o qual ambos torcíamos.
Me descobri botafoguense naquele ano, mais precisamente em um
jogo do Botafogo contra o Bangu, uma semana antes da final, que deu 0x0. Lembro
que me enfeiticei pela camisa listrada em preto e branco, pelo brasão com uma
estrela solitária, e por um time mágico que trago comigo até hoje, o qual sei a
escalação depois de tantos anos. Era fã de Josimar, Paulinho Criciúma,
Maurício, Luisinho, Gotardo, Ricardo Cruz e tantos outros.
Possivelmente aquele elenco se tornou tão importante pra mim
porque foi um momento de descoberta, das
primeiras impressões na infância e da consciência própria, quer dizer, foi
naquele momento que pensei pela primeira vez na minha relação com meu pai. 1989
foi um ano de crescimento. As minhas lembranças antes desse ano são muito nebulosas,
incertas, e seguramente por começar a acompanhar aqueles jogos junto àquele
turbilhão de sensações tornou tudo tão especial.
Quando assistimos ao jogo, mesmo eu tendo apenas 6 anos e
tendo aula no outro dia, meu pai deixou que eu ficasse até mais tarde e
assistisse à final com ele. Lembro de um time modesto, sem estrelas, sem craques,
mas aguerrido e disputando de igual para igual contra um Flamengo muito
superior. O Flamengo tinha Zico, Bebeto, Leonardo, Zinho, Aldair, porém nós
tínhamos (e ainda temos!) algo inexplicável que possivelmente outro clube não
tenha, algo maior do que jabás, do que imprensa chapa branca, do que títulos
internacionais; ou seja, temos uma espécie de tendência ao sofrimento que
geralmente se manifesta como um contágio psíquico.
Botafoguenses se reconhecem como companheiros de inconsciente
coletivo, como membros de um petit comitê seleto que sempre é ambivalente,
sempre rocambolesco como uma novela mexicana. Porém, o botafoguense, ao
contrário dos espectadores de novelas, tem certeza de que o final não será feliz.
Sabemos disso e estamos vacinados, mas como temos lapsos de memória e aqui
volto à questão do início, ou seja, ao fator passional que quase sempre se
torna maior, sofremos. Isso se parece muito com a ideia nietzscheana da lei do eterno retorno.
O Botafogo se sagrou campeão estadual de 1989, e assisti
àquela fita VHS (que meu pai gravou da TV Manchete, com narração de Paulo Stein
e comentários de Márcio Guedes e João Saldanha) mais vezes do que poderia
contar. Tudo parecia muito difícil naquele jogo. Primeiro tempo em 0x0, chances
do Flamengo. Mas no segundo tempo a coisa mudou, ao menos no começo, quando o
reserva Mazolinha (que substituiu Gustavo, que por sua vez substituiu
Jefferson) cruzou pela ponta esquerda para nosso ponta-direita Maurício (a
mística da camisa 7!), e fizemos 1x0, aos 12 do segundo tempo.
Claro que o restante do jogo, que foi interminável, foi o Flamengo
atacando e nós nos defendendo. Nos sagramos campeões e vi meu pai chorando pela
primeira vez, e isso é muito forte na vida de um piá de 6 anos: ver seu pai
chorar por um motivo que não entende direito. Aquele foi o meu momento de epifania
que trago comigo até hoje.
Infelizmente meu pai não pôde ver a ótima campanha do
Botafogo em 2023, mesmo levando vários revezes seguidos no segundo turno. Ele
teria gostado de ver seu time, depois de 28 anos, chegar tão longe. Leva ou não
leva o título desse ano? Quem vai saber? Se não levar, a memória do Seu
Fernando continua firme, sempre lembrado a cada vez que passo os olhos pelo
brasão com a estrela solitária e, muitas vezes, me pego olhando para o escudo
do Botafogo (modesto como deve ser) aqui na porta do escritório. Olho para a
estrela como se dialogasse com meu pai, como se pedisse um conselho, como se perguntasse
sua opinião. E aí, seu Fernando, levaremos o caneco?